6 - Sonhos da Seita

 
Gotham respirava como uma pausa temporåria naquele caos, mas seus becos permaneciam tão ameaçadores quanto de costume. E o amanhecer chegaria logo.

— Assim que eu descobrir algo sobre os membros da seita, eu vou atĂ© vocĂȘ — disse Batman. — Vai levar um dia ou dois para descobrir a identidade de cada um.

Selinne assentiu em silĂȘncio, seu olhar vacilante com determinação e cansaço. O gĂĄs que havia inalado antes, fazia seu corpo suar frio, e ela estava exausta.

— Vamos, vou te dar uma carona. — Batman deu um passo Ă  frente.

— De fato, meu herĂłi — ela o seguiu para fora do teatro. — Mas nĂŁo pense que te perdoei por me prender.

— Te dei vĂĄrias chances de abandonar aquela vida. Mas vocĂȘ achou que pequenos furtos nĂŁo eram o suficiente e roubou o banco. — Batman caminhou com passos pesados atĂ© seu BatmĂłvel e abriu a porta. — NĂŁo pude fazer vista grossa.

Selinne bufou.

— Os outros furtos nĂŁo foram pequenos, falar assim me ofende... — ela cruzou os braços, o encarando. — Ouvi que vocĂȘ apenas dĂĄ trĂȘs chances aos criminosos, por que comigo foi diferente?

Ele a encarou, sem responder.

— Entra no carro, Selinne.

Ela entrou rindo e cruzando as pernas. Batman fechou a porta.

O Batmóvel deslizou pelas ruas de Gotham com uma velocidade constante, mas Selinne mal notava a paisagem ao seu redor. Sua cabeça repousava contra o vidro, os olhos semicerrados, lutando para se manter acordada. Ao chegarem em frente ao pequeno edifício onde morava, ela desceu.

— Me prometa que vai me contar tudo que descobrir sobre eles... — Ela olhou para ele.

— ... Claro.

Com um aceno silencioso de agradecimento pela carona, ela escalou o portĂŁo trancado habilmente e entrou. Sem trocar de roupa, sem sequer acender todas as luzes, Selinne jogou-se na cama. O colchĂŁo afundou sob seu peso e, em segundos, a escuridĂŁo do sono a envolveu. Mas a paz nĂŁo veio.

Sorrisos maliciosos, mãos estranhas que passavam por seu corpo. Vultos que dançavam em espirais nas sombras. Vozes... andróginas, sussurrando palavras que escapavam à compreensão. Um miado longo, penetrante, que parecia rasgar sua mente. E então, olhos. Dois olhos amarelos, selvagens, olhando direto para sua alma.

Ela acordou com um sobressalto, o corpo encharcado de suor frio. O quarto estava silencioso, exceto pelo som do próprio coração batendo contra o peito. Jå havia amanhecido.

Selinne caminhou até a cozinha pequena e acolhedora, onde preparou seu café. Suas mãos ainda tremiam levemente enquanto derramava o líquido quente na caneca. Tentou afastar os ecos do pesadelo com goles lentos e a fumaça reconfortante da bebida quente.

Foi então que alguém bateu à porta.

— Quem Ă© a essa hora? — Ela olhou o relĂłgio na parede, marcando nove horas. — JĂĄ vai!... um momento.

Ela correu para o quarto e trocou seu vestido de couro, prendeu o cabelo e foi até a porta.

Ao abrir, deparou-se com seu amigo Bruce. Seus cabelos estavam perfeitamente penteados para trĂĄs, e o terno escuro lhe dava uma imponĂȘncia discreta. Mas nĂŁo era isso que chamava atenção naquele momento, e sim seu olhar — havia preocupação genuĂ­na ali, algo raro de se ver em alguĂ©m tĂŁo tranquilo.

— Bom dia, Selinne... estĂĄ tudo bem com vocĂȘ? — perguntou ele, com a voz cautelosa.

Ela forçou um sorriso e desviou os olhos azuis.

— Mais ou menos. Entra, por favor.

Enquanto ele se acomodava Ă  mesa da cozinha, Selinne preparou mais cafĂ©. As palavras se embaralhavam em sua mente. O que dizer depois daquela cena na chuva? Como explicar as ausĂȘncias, os silĂȘncios, as mentiras?

— VocĂȘ nĂŁo tem ido trabalhar... — comentou Bruce, direto, mas sem julgamento. — Passei naquele mercado, mas vocĂȘ nĂŁo estava.

— Eu... saĂ­ do emprego — respondeu ela, envergonhada, sem encarĂĄ-lo. — Preciso organizar minha mente antes de seguir em frente. Ando confusa... e depois do que aconteceu, nĂŁo me sinto tranquila de continuar com a minha nova vida. Parece que a antiga Selina nĂŁo quer me deixar. — sorriu sem graça.

Ele assentiu com um murmĂșrio compreensivo, aceitando a xĂ­cara que ela lhe ofereceu.

— A proposta ainda estĂĄ de pĂ©. Se quiser, posso conseguir um cargo melhor para vocĂȘ nas Empresas Wayne. Um lugar calmo, seguro. Melhor do que o cargo anterior, que ofereci.

Selinne refletiu por um momento. Sabia que aceitar aquele tipo de ajuda seria confortåvel e um emprego eståvel... mas também sabia o quanto Bruce jå fazia por ela.

— Obrigada... de verdade — disse, com um sorriso sincero, mas triste. — Mas nĂŁo quero me aproveitar da sua bondade outra vez, vocĂȘ sabe... jĂĄ me deu tantas oportunidades antes e me sinto em dĂ­vida... Eu ainda preciso encontrar meu prĂłprio caminho.

Bruce não insistiu. Apenas colocou a mão sobre a dela, um gesto leve, mas cheio de uma emoção que fez o coração de Selinne vacilar. Selinne sentiu um arrepio subir pelo braço. Aquele toque... havia algo de conhecido ali. Algo familiar, de alguma maneira.

— VocĂȘ nĂŁo deve pensar assim, somos amigos e enquanto eu puder, vou fazer de tudo por vocĂȘ... para te ajudar. — ele sorriu, pressionando a mĂŁo mais um pouco sobre a dela.

Ela sustentou o olhar dele por um segundo a mais antes de sorrir discretamente e puxar a mĂŁo com delicadeza. Ela lutava para nĂŁo deixar alguns sentimentos crescerem, se apaixonar por Bruce Wayne parecia perigoso, e devido a sua falta de confiança, temia perder uma amizade valiosa. Bruce era o Ășnico amigo de verdade que ela tinha, nĂŁo havia mais ninguĂ©m como ele em sua vida solitĂĄria.

— Mas entĂŁo... e a sua viagem? Conseguiu aproveitar o cruzeiro? — perguntou, tentando mudar de assunto. — Acabei nĂŁo perguntando sobre isso antes, mesmo estando curiosa.

— Foi calma. Divertida, atĂ©. Um pouco... barulhenta — respondeu ele, com um leve riso.

— Aposto que teve atenção demais das mulheres a bordo — provocou ela, divertida. — VocĂȘ Ă© famoso, todo mundo quer um pedacinho de vocĂȘ. — ela riu.

— Nem consegui olhar para elas.

O silĂȘncio pairou por um instante.

Selinne inclinou a cabeça, intrigada com a reposta dele.

— Ahm... SĂ©rio? Por quĂȘ?

Bruce desviou o olhar para a janela, observando a luz da manhã dançar sobre a borda da xícara.

— Porque eu jĂĄ tenho alguĂ©m na cabeça. E ela simplesmente nĂŁo sai de lĂĄ.

Selinne sentiu o coração falhar uma batida dolorosa. O sorriso dela se desfez, tornando-se uma linha tĂȘnue de melancolia.

— Parece que ela Ă© alguĂ©m... valiosa. InesquecĂ­vel, para chegar ao ponto de vocĂȘ nĂŁo olhar para mais ninguĂ©m... — ela se ajeitou na cadeira. — Se ela Ă© tĂŁo importante como vocĂȘ fez parecer que Ă© entĂŁo... VocĂȘ devia cuidar bem dela.

Bruce fitou a mesa por um momento, como se pesasse cada palavra antes de dizĂȘ-la. EntĂŁo respondeu com um murmĂșrio, quase imperceptĂ­vel:

— Estou tentando, Selinne...

Selinne mordeu o lĂĄbio inferior, sentindo-se vulnerĂĄvel, confusa com as palavras dele... e estranhamente melancĂłlica.

— Mas me fala dela... — ela forçou um sorriso. — Como a conheceu?

Bruce olhou para ela por um momento antes de responder, com um semblante divertido.

— Ela Ă© belĂ­ssima, mas Ă© cabeça dura... A forma como a conheci foi bem inesperado, mas nada fora do meu cotidiano... se Ă© que posso dizer...

— Agora fiquei curiosa e interessada em conhecĂȘ-la.

Bruce abaixou a cabeça e deu risada.

— Apesar de tudo que ela faz... algo... Existe algo nela que apenas eu consigo enxergar, as pessoas olham para ela... e ela mesma olha para ela, mas nĂŁo enxerga o prĂłprio potencial. O que a torna Ășnica, para mim... Ă© que somos parecidos. Ela vĂȘ um lado meu, que nĂŁo mostro a mais ninguĂ©m, e eu vejo um lado dela, que mais ninguĂ©m vĂȘ.

Selinne ouviu atenta, tentando imaginar essa pessoa. Mas havia uma ingenuidade nela que nĂŁo a deixava perceber as semelhanças. Sentiu ciĂșme e inveja, mas nĂŁo demostrou.

— Isso Ă© bonito, devia dizer isso a ela... — ela murmurou pensativa.

Bruce riu e balançou a cabeça, havia um brilho divertido em seu olhar.

— É Selinne... eu devia dizer isso a ela. — O celular de Bruce o notificou de alguma coisa e ele se levantou. — Tenho que voltar para... a empresa... Mas Selinne... eu...

Ela colocou a xĂ­cara sobre a mesa e o olhou fixamente. Bruce a analisou, e se perdeu por um momento significativo no olhar dela.

— Ainda acredito no seu potencial.

Selinne desviou o olhar para a mesa e Bruce afastou indo até a porta.

— Adoraria que visitasse a mansĂŁo Wayne no prĂłximo sĂĄbado, podemos comemorar seu aniversĂĄrio juntos lĂĄ. Alfred disse que farĂĄ um bolo, em troca de ver Isis... ele nĂŁo disse nessas palavras, mas sei que Ă© exatamente assim que ele pensa.

— É mesmo! — ela se lembrou. — Eu jĂĄ estava esquecendo disso. VocĂȘ sempre lembra de tudo, Bruce. Vou levĂĄ-la.

— EntĂŁo te vejo lĂĄ. — ele sorriu gentilmente e saiu do apartamento com passos apressados.

Depois de lavar as xĂ­caras e arrumar seu apartamento, Selinne deixou comida para Isis e pegou os jornais para procurar por vagas de emprego. A noite caiu, e enquanto preparava o jantar, o noticiĂĄrio de Ășltima hora, avisou de mais um roubo, dessa vez em uma joalheria famosa de Gotham. Outros itens felinos, foram levados.

— Isso nunca vai acabar?! — Selinne jogou um garfo na parede.

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