44 - Outra Quarta-Feira

 

Sentada na traseira de uma ambulância aquática, sentindo o calor do cobertor cinza jogado sobre os meus ombros. Observo de longe enquanto as algemas se fecham em torno dos pulsos dos membros da seita. Eles são levados para o barco da polícia, alguns resmungam, outros tentam fugir sem sucesso. A noite está fria e o cheiro de antisséptico queima nas minhas narinas, mas não o bastante para anular o gosto amargo que está na minha garganta.

Meu corpo dói bem menos agora, depois que me deram um analgésico. Me sinto mais calma também, embora minhas mãos ainda tremam pelo trauma das coisas que passei, e presenciei aqui. Sem muito bem que depois que eu sair daqui, mesmo que as cicatrizes fiquem e os machucados se curem, ainda vou me lembrar de cada detalhe aterrorizante.

O templo está cheio de policiais, eles tiram fotos e a impressa está quase chegando para reportar. Algo novo chama a minha atenção enquanto meus olhos acompanham, sem piscar, quando dois policiais arrastam Sekhmet algemada para fora do prédio. Ela se debate, mesmo fraca, e quando me vê, para por um segundo. Me levanto, ignorando a dor latejante que volta nas costelas, e caminho até ela.

— Sekhmet... Em breve vou visitar você na prisão... — digo com a voz rouca, sem saber se é uma promessa ou uma ameaça.

Ela me encara com aquele olhar vazio, contaminado pela raiva e pela lavagem cerebral que Ramsés enfiou na cabeça dela desde o nascimento. Não responde nada de imediato, apenas cospe as palavras como veneno.

— Eu não quero ver a sua cara, eu te odeio! Quero ver você morta um dia... Quando eu sair, você vai pagar por tudo isso. — ela cospe no chão ao meu lado.

Fico parada, ouvindo aquilo, e me pergunto se algum dia ela vai se libertar dessas amarras invisíveis. Talvez, com o tempo, com muita terapia, se a vida permitir. Torço, lá no fundo, para que Sekhmet consiga se curar. Não merece continuar vivendo acorrentada a uma mentira tão cruel quanto à qual Ramsés a submeteu. Ela é minha irmã mais nova, mesmo que ela não me veja como sua irmã, não muda a relação que temos.

Os policiais a puxam outra vez.

Me afasto devagar, voltando a me sentar na ambulância. A sirene do terceiro barco de polícia mais próximo liga, abafando a respiração pesada que solto. O céu está limpo, estrelado, contrastando com o caos que se espalha ao meu redor. O vento sopra mais frio e outra coisa chama a minha atenção.

Harvey.

Ele se aproxima, as mãos no bolso e aquele olhar meio culpado, e meio aliviado.

— Vamos limpar sua barra, e evitar que a imprensa mostre seu rosto. A polícia ainda manterá a sua identidade em segredo. — ele fala, tentando soar confiante. — Com as provas que encontramos, não tem mais como duvidarem da sua inocência. Fora... aquelas fotos bizarras.

Dou um sorriso sarcástico, sem vontade.

— Isso é o mínimo, Harvey. Eu sempre disse que era inocente, mas a polícia nunca quis acreditar... nem mesmo você. E não acho que... eu deva te culpar.

Ele fica em silêncio, apenas coçando a nuca, sem saber o que dizer. Depois de alguns segundos, murmura:

— Só comecei a acreditar de verdade de uns dias pra cá... Acho que foi só depois daquela discussão na rua. Ainda assim, não tinha nada que eu pudesse fazer além de te observar e torcer para que eu estivesse certo sobre você.

Eu só suspiro. Não vale a pena responder mais nada.

O movimento ao meu redor parece desacelerar quando vejo Bruce... não, Batman, terminando de conversar com Gordon, à distância. Ele olha na minha direção e vem andando, com aquele jeito dele: passos firmes, postura rígida, mas o olhar... o olhar mais suave do que a maioria imagina que o morcego poderia ter.

— Aceita a minha carona? — pergunta, sem rodeios.

Só faço que sim com a cabeça. Não tenho forças para responder em voz alta. Antes de ir, Gordon se aproxima, com um pano nos braços. Paraliso quando vejo o que ele carrega. Meu coração falha uma batida.

— Isis... — sussurro, estendendo as mãos trêmulas.

Eles não me deixaram pegar ela antes de verificarem o que aconteceu. Mas agora a liberaram.

Ele coloca o pequeno embrulho em meus braços, com o cuidado e respeito de quem entende que ela não é "apenas" uma gata. É minha família.

— Sinto muito, Selinne... — Gordon diz, com um tom pesaroso.

Não respondo. Não consigo. Apenas abraço aquele pequeno corpo envolto no pano, apertando com toda força que ainda me resta. O choro preso ameaça escapar, mas me mantenho firme. Não na frente deles. Não aqui outra vez.

Sigo Bruce até sua lancha negra, e vamos embora, deixando o templo isolado da ilha para trás.

(...)

Duas semanas se passam. O noticiário não fala de outra coisa desde que tudo aconteceu.

— [...] Novas atualizações sobre a "Seita Felina"... Todos os membros e líderes da Seita Felina foram presos, incluindo o vereador de Metropolis, Conrad Relder. Graças à ação conjunta do Batman e da Polícia de Metropolis, a organização criminosa conhecida como Lua Negra, que financiava este e mais outras seitas religiosas, foi rastreada e está sendo desmantelada, com os responsáveis sendo presos e indiciados um a um. Documentos encontrados na ilha relatam situações onde...-

Desligo a TV, sem conseguir assistir até o final. Ainda dói demais relembrar tudo. Minhas costas ainda ardem, quando lembro daquela lâmina nas minhas costas. Ainda não fui visitar Sekhmet, mas pelo pouco que Bruce me atualizou, ela está progredindo bem com a terapia em Arkham. Agora apenas aguardo o momento certo para fazer a minha primeira visita.

Minha mão se ergueu para o lado no sofá, como se automaticamente buscasse algo. Vazio. Olho na direção do estofado e percebo a ausência. Meus olhos mudam de direção e vejo o potinho de ração de Isis, ainda no canto da sala, cheio, intocado desde aquele dia. Ainda não consegui retirar. Pensar que ela ainda está aqui me faz sentir um pouco de conforto.

Mas quando a minha mão, não encontra o que procura. Dói outra vez. A ausência dói mais do que qualquer coisa. Quando olho para os brinquedos e o arranhador, as lágrimas surgem sem qualquer controle.

Meus ferimentos físicos cicatrizam devagar. Cada movimento ainda me lembra da luta. Mas o pior... o pior está aqui, latejando, pulsando, queimando no peito. Esse ferimento ninguém pode tratar. Não existe curativo ou ponto que feche esse buraco.

Às vezes acordo à noite e acho que ouvi o miado dela, suas patas sobre o meu peito, como se me pedisse carinho de madrugada. Outras, penso que a vejo pular no sofá, enrolar-se na manta velha. Mas é só o vazio, o eco do que se foi.

Hoje é quarta-feira, nessas duas semanas se tornou rotina ir até o cemitério de animais de Gotham. Compro um ramalhete de flores simples, mas bonitas. Ela nunca ligou para luxo contanto que estivesse comigo. O céu está nublado, a noite fria e o cheiro de Gotham nunca foi dos melhores.

Quando chego lá, me ajoelho, colocando as flores com delicadeza na pequena lápide com o nome "Isis" gravado. Passo a mão sobre a pedra fria, respirando fundo, tentando não me desfazer em lágrimas de novo.

— Espero que um dia eu possa te ver de novo... — sussurro. — Você não merecia isso...

Fico ali, sem saber por quanto tempo, até ouvir passos atrás de mim. Me viro devagar ao sentir um cheiro familiar.

Bruce.

Está parado, com uma das mãos no bolso do sobretudo, o capuz abaixado. Não usa o traje do Batman, mas está ali, como sempre, surgindo quando eu mais preciso. Em sua mão há um buquê caro, trouxe para ela.

— Eu sabia que você viria aqui... — disse, com aquele tom calmo, firme, mas... humano.

Dou uma risada fraca, vendo ele se aproximar e colocar sobre a lápide ao lado do meu.

— Achei que estivesse patrulhando.

— Hoje não... — Ele dá de ombros. — Mas como hoje é quarta, pensei que fosse bom passar aqui.

Fico em silêncio, olhando para a lápide. Ele se aproxima mais, ficando ao meu lado.

— Sei que deve parecer impossível agora... — ele começa, olhando para as flores — ... amar outro animal de novo.

Fecho os olhos, engolindo em seco. A ideia me assusta. Não sei se consigo. Não quero substituir Isis, não quero fingir que ela nunca existiu...

— Mas... — ele continua, com a voz gentil — tem duas gatas que resgatamos do culto do Relder. Estão precisando de um lar temporário.

Viro o rosto para ele, surpresa.

— Bruce... eu... não sei se consigo.

Ele sorri de canto, sem pressão, sem exigências.

— Não tem problema. Só achei que... talvez... te ajudasse um pouco.

Fico olhando para ele, para a lápide, para o céu carregado de nuvens. Respiro fundo, lutando contra a vontade de dizer "não". Mas sei que ele tem razão. Talvez seja um jeito de lidar com a dor... não de esquecê-la, mas de transformá-la em algo menos sufocante. De dar a essas gatas algo que não posso mais dar a Isis.

— Tá... — digo, por fim. — Eu... posso tentar. Mas se eu não conseguir, eu posso... te ligar?

Ele coloca uma mão no meu ombro, apertando de leve, como um apoio silencioso.

— Claro, e sei que elas vão gostar de você.

— Espero... — respondo, olhando de volta para a lápide e, dessa vez, sorrindo de leve, mesmo com o coração ainda pesado.

Ele me oferece a mão e o sigo para fora do cemitério, deixando as flores, a dor e parte do passado ali, naquele cemitério silencioso.

O passado ainda dói, as cicatrizes permanecem... Mas pela primeira vez, sinto que posso respirar aliviada, sem sentir que o mundo todo torce para que eu caia. Com Bruce sei que posso me manter firme nesse caminho que escolhi. Gotham nunca vai mudar, as ruas vão continuar molhadas, as luzes vão piscar quando passo, os predadores vão permanecer nas sombras e o cheiro desagradável nunca vai embora.

Mas de uma coisa estou certa, eu não sou mais a mesma. O caos vai continuar onde quer que eu vá, mas dessa vez... dessa vez eu não estou mais sozinha.










(Fim) O Capítulo extra estará disponível na versão física!

Obrigada por ler...!

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