43 - A solidão de não ter alguém para impedir

 

Ramsés se lançou contra mim, tentando arrancar a lâmina das minhas mãos.

— Me dá isso! — gritou, os olhos arregalados de fúria, agarrando meu pulso. A calma que ele exalava antes agora é inexistente.

Lutei, puxando o punhal para trás, mas ele é forte, mais do que eu imaginava que seria. Ou talvez fosse apenas o meu corpo já fraco pelas lutas anteriores e os machucados durante a minha tentativa de me manter viva. Ele empurrou meu ombro ferido, me desequilibrando, mas, com a raiva explodindo no meu peito, ergui o joelho e o acertei com força na barriga.

Ele se curvou, soltando um grunhido, e eu me desvencilhei, respirando ofegante.

Mas ele se recompôs rápido demais.

O soco veio seco, direto na lateral do meu rosto.

Tudo girou em um borrão.

Cai de lado, o punhal escapando da minha mão e deslizando pelo terraço de pedra.

— Sua estúpida... — ele rosnou, se aproximando de mim, a voz embargada de desprezo. — Tão estúpida quanto sua mãe... Você nunca entendeu a grandiosidade do poder que possui, você não merece a Graça, não merece Bastet!

Me arrastei, o rosto latejando, o sangue quente escorrendo do canto da boca.

Ele me olhava de cima, como quem observa uma criatura inferior, condenada a falhar.

— Sua Graça deveria ser dada a Sekhmet... — continuou, a voz fanática, cheia de uma devoção doentia. — Ela se provou muito mais digna, ela entendia o propósito. Ela deveria ter ganhado, e não você! Sem a sua graça, você não é nada!

A raiva subiu como uma maré bruta no meu peito e punho.

Me levantei, mesmo tonta, e o soco que dei nele foi só o reflexo do ódio que ele plantou em mim. Eu sempre soube que a minha raiva vinha de algum lugar, e era do trauma dessa maldita seita, adormecida no meu subconsciente até que eu pudesse entender tudo. Ele era o motivo de tudo isso, se ele não existisse, se essa seita não existisse... eu não conheceria a solidão e o desespero de tentar encontrar um propósito.

Sempre me senti deslocada do mundo, alguém que nunca teve um lugar onde pudesse se refugiar. Busquei por um porto seguro durante muito tempo, seja me refugiando na Cleptomania, nos meus roubos grandiosos, em um romance tóxico, em uma amizade estranha ou até mesmo... em uma gata boazinha.

Agora saber o propósito da minha existência, nada mais é, do que decepcionante.

— Você é um pai horrível! — gritei, a garganta ardendo, as lágrimas começando a invadir meus olhos outra vez. — Você usou e manipulou Sekhmet pra ser alguém que ela não é! Aposto que nunca a abraçou, que você nunca a amou. Você não ama a nada, — rosnei. — além de si mesmo e dessa loucura toda! Ela deve ter tido uma vida tão miserável quanto a minha, mesmo aqui cercada de riqueza... tudo o que ela conhece é seu dever como uma substituta!... — tomei as dores de Sekhmet como se fossem minhas.

Ele cambaleou um passo para trás, limpando com desprezo o sangue que escorreu do canto do lábio depois daquele soco.

E então riu, uma risada vazia, sem alma.

— Sekhmet? Eu nem a considero minha filha... — falou, com aquela frieza monstruosa. — Apenas a gerei para ocupar o espaço que você deixou... depois que sua mãe te sequestrou. Ela não é nada para mim além de um vaso para ser preenchido pela Graça de Bastet! — ele cuspiu aquelas palavras horríveis como se não fosse nada. Eu esperava que ele tivesse um pingo de humanidade, mas ele está vazio. Completamente vazio.

Ele avançou, tentando me derrubar novamente, mas eu me joguei para o lado, rolando, buscando com o olhar... o punhal!

Ali, a poucos metros.

Corri, me estiquei, agarrei a lâmina... e me virei com um grito selvagem, tentando cravá-la no peito dele.

Mas ele desviou, com uma agilidade maldita. Ele tinha vantagem sobre mim, não que eu fosse fraca, mas pelo meu corpo já exausto e ferido.

— Eu não aceitarei morrer pelas suas mãos! — gritou, e o fanatismo brilhou mais forte nos olhos dele. — Você não é digna de ser Bastet!

E então me acertou com um chute brutal no estômago, próximo do ferimento que Sekhmet havia me feito antes.

O ar fugiu dos meus pulmões.

Caí de costas, gemendo, o punhal escapando de novo das minhas mãos. Minhas costas ardiam pelos ferimentos, grunhi de dor, me contorcendo por causa do impacto.

Antes que eu pudesse me levantar, outro chute veio no meu ferimento. E mais um.

Ele chutava meu corpo como se eu fosse um saco vazio, cada golpe arrancando mais sangue dos meus machucados agora abertos. Eu gemia a cada chute, meu ar era arrancado a força e meus ossos pareciam ranger dentro da carne cheia de ferimentos e cortes.

Mas no meio da dor... olhei para Isis no chão, seus olhos amarelos estavam abertos. Ela me olhava, meu reflexo estava ali... então a fúria reacendeu mais uma vez. Eu não devo vacilar, não posso continuar no chão, não posso, não posso.

Levanta Selinne!

Quando ele ergueu a perna de novo, me virei, segurei o tornozelo dele com todas as forças e o puxei. Ele perdeu o equilíbrio, caiu pesadamente ao meu lado. Mesmo com minha carne gritando pela exaustão e o sangue escorrendo pela minha pele... Me joguei sobre ele, os punhos fechados, e comecei a socar seu rosto, uma, duas, três vezes, enquanto as lágrimas desciam descontroladas.

— VOCÊ MATOU ELA! — gritei, o som se diluindo em soluços, em grunhidos, em uma dor que não sabia como conter. — Você é um monstro, você não é humano! Você é um lixo!

Ele tentava se proteger com os braços, mas eu não parava.

Eu não podia.

Cada soco era um lamento por Isis.

Cada soco era a dor de ser perseguida a vida inteira.

Cada soco era o grito de uma menina que nunca teve escolha a não ser fugir, roubar, sofrer sozinha.

Quando vi, o punhal estava ao meu lado, ao alcance da mão. Peguei, ainda ofegante, com o peito subindo e descendo descontroladamente. Ergui a lâmina, apontando para o peito dele, pronta para dar o golpe que ele merecia.

Pronta para vencer aquela luta.

Pronta para acabar com o sofrimento que sempre me perseguiu.

Mas antes que eu cravasse...

— Não faz isso!

A voz.

Tão grave, tão próxima.

Me virei num rompante, o braço ainda suspenso no ar.

Bruce.

Parado na porta, a capa esvoaçando com o vento gelado do terraço.

O olhar dele... não era de censura.

Não era de alguém que queria bancar o herói.

Era... de súplica.

Eu mal conseguia respirar direito, meus olhos ardendo de tanta raiva e dor pelo que foi tirado de mim.

— Ele matou ela!... — gritei, a voz falhando, fraca, enquanto apontava o punhal de novo para o peito de Ramsés. — Ele matou a Isis...!

Bruce avançou um passo, com as mãos abertas, calmo, mas eu não conseguia mais escutar nada além do som do meu coração descompassado. Eu queria justiça por Isis, até mesmo por Sekhmet que merecia ter um pai melhor, — mas que eu sabia que nunca teria.

Vi quando Batman olhou de relance para o chão...

E viu o corpo dela.

Isis.

Deitada no meio daquele círculo... a barriga murcha sem ar algum...

O pelo brilhoso e negro, ainda sujo de sangue.

Um soluço explodiu no meu peito e meus joelhos se ergueram saindo de cima de Ramsés. Mesmo com as dores, me forcei a ficar de pé. Agarrei Ramsés pelos cabelos e puxei ele com força, erguendo o corpo mole dele enquanto apontava a lâmina contra a garganta dele.

Eu queria cortar ali, no mesmo lugar onde ele perfurou Isis. Fazer ele se afogar no próprio sangue enquanto a última coisa que ele verá é o meu rosto.

— Você merece morrer... — sussurrei, o olhar fixo, endurecido. — Pelas minhas mãos... Não acha que assim é mais justo? Hm? Morrer pelas mãos da coisa que você criou?...

Ramsés não disse nada. Seus olhos estavam inchados pelos socos que dei. Ele não é meu pai, ele não é nada para mim, além de um homem doente e perverso. O meu pai já morreu há muito tempo, e apesar de não termos tido o mesmo sangue, foi a pessoa mais honesta que conheci. Porque mesmo que estivéssemos na pior, arrumava trabalhos pequenos para sustentar a mim e a minha mãe.

Bruce deu mais um passo, a voz calma:

— Selinne... não precisa ser assim. Precisamos dele para chegar à Lua Negra...

Balancei a cabeça, negando com raiva, sem conseguir conter as lágrimas.

— Ele quer morrer achando que vai voltar... — minha voz tremia de fúria. — Que vai renascer em outro corpo e que ganhou de mim!... mas não... eu não vou deixar...!

Apertei a lâmina contra a pele dele, vendo uma linha fina de sangue surgir.

— Ele merece morrer pelo mesmo punhal que tirou a vida da Isis...!

— Selinne... não. A polícia está lá embaixo, se você fizer isso, vai ser presa por longos anos. E os responsáveis por essas seitas nunca serão presos.

O vento gelado passava por nós, agitando a capa dele, balançando as velas apagadas do ritual macabro. Ramsés arfava fraco sob meu braço, mas não dizia nada. Eu ainda podia ver a ponta de sua pupila, ele me encarava em um tom de desafio. Minha mão tremeu. E eu não sabia mais se tinha forças para soltar...

— A Isis merece justiça... ele é uma pessoa má! Não é diferente do Coringa ou do Duas Caras, ele precisa morrer para que o mundo se torne um lugar melhor! — minha mão continuava tremendo.

— O mundo não será melhor com a morte dele. Assim como não é sem o Coringa ou o Duas Caras, é diferente.

— E como isso poderia ser diferente?! — gritei, olhando para Batman por um segundo. — Ele fez pessoas morrerem, ele fez a minha vida um inferno! Olha tudo o que ele já fez!

Batman deu mais um passo.

— Isso é vingança.

Minha mão se afastou um pouco, reconhecendo algo que eu não queria admitir.

— O Coringa e o Duas Caras não iam parar... mais pessoas inocentes iriam morrer. — continuou Batman ainda com a voz calma. — Mas não fiz aquilo por mim, cego pela raiva... fiz pela segurança pública, você sabe disso... falamos disso antes.

Ele deu outro passo.

— Estarei fazendo o mesmo!... mesmo que seja por motivos diferentes. Ele não vai parar de espalhar essa doença, ele não vai parar de manipular as pessoas!... dizer essas coisas não me convence.

Bruce ficou em silêncio por um momento, então me olhou outra vez.

— Não há um dia em que eu não pense no que fiz... nas vidas que tirei. Isso me assombra todas as noites... Uma parte de mim morreu junto com eles, uma parte de mim que nunca poderei recuperar mesmo que limpe essa cidade toda, ou que dedique toda a minha vida para lutar contra o crime. Pode parecer agora que isso vale a pena, que sacrificar a sua humanidade seja vantajoso, mas acredite em mim como alguém que já passou por esse caminho... não vale.

Olhei para Ramsés, a raiva ainda crescendo a cada segundo.

— Temos visões bem diferentes do que vale a pena ou não!... Sua experiência não define como vai ser a minha... — pressionei o punhal novamente.

— Eu gostaria de ter tido outra opção na época, mas não tive. Ao contrário de você que tem, e não está sozinha... Eu... não tive ninguém comigo lá, para me dizer que eu não deveria fazer aquilo. Alguém que lutasse por mim para manter aquela pequena parte de humanidade que pensei ser insignificante.

Minha mão apertou o cabo com força, tentando ignorar algo que Bruce acabou de despertar em mim.

— Selinne... olhe pra mim.

Rangi os dentes, as lágrimas percorrendo meu rosto. O soluço explodia no meu peito.

— Olhe pra mim... — ele pediu outra vez, a voz mais baixa agora.

Minha cabeça tremia, mas ao olhar Batman, estremeceu algo dentro de mim.

— Não faça isso... — ele disse baixo, como um sussurro rouco. — ... Não faz isso comigo... não me deixe sozinho outra vez.

Vacilei, o ar escapando da minha boca.

O punhal se afastou lentamente, movido por algo invisível.

Ramsés caiu no chão, e eu me afastei com passos lentos.

Bruce me olhou, foi até Ramsés e o prendeu.

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