42 - O quarto das fotos
Cada porta que eu abria naquele corredor, me fazia prender a respiração. A primeira porta que abro, há ouro reluzente, relíquias arrancadas de tumbas esquecidas, estátuas de Bastet com olhos vazios. Minha pele arrepiava com um sentimento que mal consigo descrever. O lugar é escuro, mas não há nem sinal de Ramsés.
Voltei ao corredor, a respiração ainda presa no peito e meus olhos ardendo menos.
A segunda porta, é um quarto vazio, exceto pelo círculo desenhado no chão, velas já derretidas ao redor. Um cheiro de incenso queimado que é familiar, lírio outra vez. Aquele lugar tinha um resquício vermelho nas paredes e no chão, um cheiro metálico no ar. Algo cruel foi feito ali, e meu estômago revirava com aquele cheiro horrendo de morte. Voltei ao corredor mais uma vez, mas não menos tensa ou ansiosa.
A terceira, a quarta... todas repetiam essa dança grotesca entre a loucura e o fanatismo cego.
Quando girei a maçaneta da penúltima porta, o ar ficou mais difícil de respirar. Entrei com passos hesitantes, mas o olhar atento. Era um escritório, uma mesa no centro, uma janela pequena no lado esquerdo e uma abajur pequena sobre a mesa de madeira. Mas o que vi nas paredes atrás da mesa fez meu coração pulsar mais forte.
Eram fotos minhas.
Centenas delas coladas nas paredes.
Havia também alguns papéis e mais fotos sobre a mesa. Me aproximei para olhar, o nojo e a raiva crescendo a cada olhar sobre elas. Tinham fotos minhas nas ruas, depois que fugi do orfanato e roubava carteiras pelos becos e avenidas. Fotos minhas colocando lixo para fora naquela primeira boate onde arrumei emprego. E depois mais algumas comigo mais velha, saindo daquele curso de ginástica onde aprendi minhas acrobacias. Depois com Bruce ao sair de uma loja, eram imagens minhas em todas as situações possíveis, durante roubos, fugas, passeios.
Eles me observavam a mais tempo do que eu imaginava.
Recuei alguns passos esbarrando na mesa. Ao olhar para os papéis com nomes e outras informações dessa seita, um quadro ao lado do abajur, chamou a minha atenção. Na moldura tinha uma foto em grupo, com todos os líderes da seita. Eles usavam um capuz longo e vermelho que ia até os pés. Todos segurando relíquias de ouro, e sem máscaras.
Uma mulher chamou a minha atenção no centro da foto, uma loira de pele pálida e olhos profundos. A minha mãe.
Ela segurava algo nos braços, envolto em um pano branco. Era eu, ainda um bebê, eu sabia, mesmo que meu rosto não estivesse visível.
Minhas mãos trêmulas mexeram nos papéis sobre a mesa outra vez, e as próximas fotos me deixaram enjoada. Eu criança em cima de uma mesa, tinha em torno de quatro a cinco anos, nua como um animal. Nova demais para entender como as pessoas a minha volta eram nojentas. A minha volta havia mãos erguidas para cima, desejando me tocar.
Meus punhos cerraram com força. Eu ainda tinha esperanças de que tudo isso fosse loucura, que fosse mentira. Mas ao ver a minha mãe ali, só comprovava que aquela história maluca era verdadeira. E as fotos, as fotos...
Minha garganta se fechou.
A raiva subiu pelo peito, quente, como se pudesse queimar todo aquele lugar. Eu fui perseguida a vida inteira e nem sequer sabia o que me rodeava. Eles estavam sempre a minha espreita, aguardavam que esse momento chegasse. Esperavam que eu "despertasse" e que voltasse para casa.
Era nojento, e meu estômago se apertava tanto que eu queria vomitar. Minha boca estava seca e as mãos tremiam, eu queria me manter firme diante daquela revelação macabra e maluca. Mas era impossível manter a calma ao ver tudo aquilo.
Cada foto era pior que a anterior.
Aqueles sonhos bizarros deles passando a mão em mim como se eu fosse um animal era real. Eles sempre tiveram uma visão e uma expectativa macabra sobre mim. Saí dali cambaleando, sufocada pela sensação horrível de ter sido usada, tratada como um animal. Eles não me viam como humana, eles não se importavam com nada além daquela fé cega e doentia.
Voltei para o corredor desejando esquecer tudo que vi. E na última porta, hesitei temendo o que estava por vir. Respirei fundo e empurrei.
O que vi foi um corredor escuro, apertado, repleto de estátuas de gesso, — cabeças felinas sobre corpos femininos, imagens de Bastet. — cada uma parecia me julgar conforme eu passava.
Meus passos ecoavam naquele corredor, rápidos, descompassados. Ficar ali era como sentir que eu seria atacada a qualquer momento por elas. Vi uma escada no fim e subi, cada degrau era mais difícil de prosseguir que o anterior. Minhas pernas pareciam mais pesadas que o normal e eu sentia uma sensação estranha no peito. A essa altura eu já não sei se é pelo gás do medo, mas eu sabia que ele ainda tinha efeito sobre mim, mesmo que eu não tivesse inalado tanto.
Assim que cheguei diante da porta, eu a empurrei e senti o vento frio e salgado da maresia atingir o meu rosto, fazendo meus cabelos ricochetearem no meu rosto.
Congelei ao olhar para o centro do terraço, ali cercado por velas e símbolos antigos desenhado no chão, estava Ramsés.
Com o punhal suspenso.
E Isis... no centro.
Ela estava com as patas amarradas, acuada, miando por mim com olhos arregalados.
— Espere! — gritei, a garganta rasgando, dando um passo, depois outro. — Não faça isso, deixe ela ir embora!... por favor, por favor, não faça isso. Não machuque ela...!
— Parece que você chegou bem a tempo... — ele sorriu calmo, como um verdadeiro psicopata.
— Você iria fugir, não é? — olhei dentro dos olhos dele. — Pode ir! Mas deixe a minha gata viva, você não precisa fazer isso! — ergui as mãos, tentando mostrar que eu não era uma ameaça. — Olha, eu tô bem aqui, mas não vou fazer nada... eu não vou me mexer, apenas deixe ela ir e vá embora!
Ramsés me olhou com aquela calma doentia, como se eu fosse só mais um obstáculo trivial.
— Há outros meios de fuga, Selinne!... A fuga espiritual, é a que nós valorizamos aqui... — disse, com aquela voz fria e mística. — Sacrificarei Isis... e renascerei. Em outro corpo. Bastet me perdoará por falhar nessa vida. Mas na próxima eu vou fazer tudo certo... — ele fechou os olhos por um momento, sorrindo. — Quero ser um gato da noite...!
— Você é louco! — gritei, a voz embargada, as lágrimas começando a queimar meu rosto. — Isso é doença! Você não vai renascer em lugar nenhum! — minha voz tremia de raiva. — Você não vai... não vai... — eu solucei.
Abaixei o corpo, mantendo as mãos erguidas, tentando conter a minha própria urgência, suplicando
— Por favor... não faça isso... — olhei dentro dos olhos dele, minhas mãos tremendo bastante. — Ela é só uma gata... só quer carinho e um pouco de leite... — as lágrimas escorriam como rios. — Ela teve uma vida difícil nas ruas, estava faminta quando a encontrei, ela foi o meu refúgio, ela me mantém calma... ela é tudo de mais valioso que eu já tive...! — abaixei a cabeça, os olhos fechados. — Isis foi abandonada, viveu sozinha... foi tratada como algo sem valor... — abri meus olhos. — e eu a abriguei como o meu maior tesouro...
Ele inclinou o punhal.
— Não...! — mordi os lábios e solucei outra vez. Nunca estive tão vulnerável como agora. — Não faz isso comigo!...
Mas antes que minha súplica terminasse, ele baixou a lâmina friamente.
O grito de Isis foi um corte que atravessou minha alma. O ar escapou de meus pulmões tão rápido que minha vista escureceu.
— NÃÃÃO!
Corri com toda a fúria que ainda me restava e o acertei com um chute violento. Ramsés caiu de lado, o punhal escorregando da mão dele e batendo no chão com um tilintar seco
Me ajoelhei, peguei Isis nos braços.
O sangue quente escorreu pelos meus braços. Muito sangue.
Ela ainda miava, fraca, se encolhendo em mim, como se buscasse um refúgio daquela dor.
— Me desculpa... me desculpa... — repetia, a voz quase sem sair, apertando ela contra o peito, sentindo o calor dela ir embora. — Isis, fica comigo, não me deixa sozinha de novo... não quero ficar sozinha...! Eu não quero... — solucei, olhando para o rosto dela, vendo seus olhos se fechando. Ela miava quase sem forças, tentava resistir por mim. Tentava miar em resposta.
O sangue escorria pelo meu corpo, quente. Jorrando de seu pescoço como um rio. Me abaixei mais, tentando tapar o ferimento, mas não estava funcionando. Mesmo assim tentei. Eu não podia ficar apenas olhando ou chorando, eu precisava fazer alguma coisa, mesmo que não fosse o suficiente.
Ramsés se ergueu lentamente gemendo de dor pelo chute que dei. Era como se não tivesse pressa, como se a cena diante dele fosse apenas mais uma parte de um grande e inevitável ciclo de separação.
— Por que fez isso?... — minha voz saiu fraca. — Por que tirar tudo de mim?... eu não me importava de perder a minha vida, ou qualquer coisa que eu tivesse de valor... amigos, emprego, a confiança das pessoas... mas a Isis?... — minha voz falhou, mesmo assim me forcei a falar. — Você passou do limite...
— Você não entende, Selinne... — disse, olhando para mim com aquele olhar vazio, sem nenhuma centelha de humanidade. — Os gatos... são meios para distribuir vidas. Eles têm sete... e ao sacrificá-los... essas vidas são dadas aos fiéis de Bastet. — ele falava como um louco. — depois disso, eu terei uma nova chance!
Eu mal o ouvia, suas palavras vazias não fazem sentido para mim. Não faz qualquer sentido.
A respiração de Isis estava fraca demais.
Senti meu peito se encher de um ódio que nunca conheci antes. Qualquer raiva anterior a essa não é nada perto da que eu sinto agora.
Desviei meus olhos molhados de Isis e olhei para o punhal que antes ele segurava.
Minha mão fechou firme sobre o cabo, devagar, como quem segura uma decisão já tomada
Levantei o olhar para ele, com a visão turva de lágrimas e fúria. O corpo de Isis ficou naquele círculo, a coloquei cuidadosamente.
— Você é um doente de merda... — sussurrei, a voz firme, mas tomada por uma raiva que me fazia tremer. — Um maluco psicopata que induz pessoas ao suicídio com essas promessas ridículas de novas chances... Você brinca com as vidas de inocentes... fazendo eles acreditarem que podem recomeçar suas vidas miseráveis... você é nojento.
Ele nem piscou.
Sem um traço de remorso, ou de hesitação em seu olhar...
Só aquele olhar vazio.
Como se eu fosse insignificante
Como se a vida da minha gata fosse só mais uma oferenda macabra.
Apertei mais forte o punhal, podia sentir o ferro do cabo mudar de forma sob a pressão que eu fazia.
— Você quer que eu seja Bastet? — me levantei. — Você busca algum tipo de aprovação?...
Então vi seu olhar mudar. Ele via algo em mim.
— É tudo que eu mais quero... — ele murmura sem piscar.
— Mas não vai ter.
O rosto dele fica sério, sua postura calma começa a desaparecer. Os ombros relaxados se erguem, ficando tensos.
— É Bastet que você tanto preza falando agora. — passei por Isis. — E eu te abomino. Você é uma vergonha, você é uma desonra a mim.
Ele queria isso, ele queria que eu abraçasse esse papel. Vejo isso nos olhos doentes dele. Ele é tão louco que sequer compreende o meu deboche.
— Eu sou Bastet, e te digo que você fez tudo errado. — aponto o punhal para ele.
Ramsés aperta os punhos, seu rosto fica vermelho de raiva. É fácil desestabilizá-lo quando toco em sua crença frágil.
— O quê?! Depois de tudo que eu fiz por você?... Você... você me abomina?!
— Tudo o que eu mais quero agora, é que você desapareça! — avanço na direção dele, tentando perfurar seu corpo com o punhal, mas ele desvia.
— Você não é Bastet! — ele grita, tentando arrancar o punhal da minha mão.
— Eu sou! — insisto, dessa vez o empurrando com meu ombro ferido. — Não é isso que você queria!? Agora aceita! Eu sou Bastet e você deve morrer! Eu não vou permitir que você renasça!
Ramsés se afasta e tenta me dar um chute, mas desvio. Minha mão se move rápido e faço um corte no braço dele. A dor o faz cair no chão.
— Eu sou o seu pai! Pare, Selinne! — ele começa a apelar, se afastando no chão.
— Meu pai!? Mas que piada! Você pode até ser o meu genitor, mas não é nada meu! — chuto o rosto dele, Ramsés me olha com irritação e vem na minha direção outra vez.
Sei que no momento em que ele tomar esse punhal, não vai hesitar nenhum segundo antes de tentar me matar.



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