39 - Peças do meu passado se encaixando
Caminho em silêncio pelos corredores dourados, ouvindo apenas o som dos meus próprios passos e da voz de Ramsés. Ele fala como quem ensina uma criança, paciente, cheio de reverência por cada palavra estúpida que diz.
— Tudo começou com trinta... — ele diz. — Trinta escolhidos por mim. Irmãos e irmãs em fé. Eu fui o primeiro, o fundador de nossa causa. Um historiador no passado... obcecado pelo Antigo Egito, como muitos antes de mim, mas diferente deles... eu fui chamado.
Ele se vira para mim, os olhos brilhando com uma devoção cega.
— Durante uma expedição ao Egito, fui até o Lago Nasser. Tive um sonho, uma visão... Uma voz me dizia que uma estátua estava lá. Submersa, esquecida. Acordei sabendo exatamente onde procurar. Entrei na água como um louco... mas lá estava ela. Bastet. Deusa dos gatos, da justiça, da fúria e da proteção...
Meu corpo inteiro se arrepia. Ele fala com tanta certeza que chega a ser perturbador.
— Depois daquele dia... nunca mais fiquei doente. Minhas finanças dispararam, meus caminhos se abriram. Ela me escolheu, Selinne. Me fez próspero para que eu pudesse honrá-la, me fez seu sacerdote... Mas em um outro sonho, ela falou comigo.
Ele para diante de uma estátua de pelo menos cinquenta centímetros. É de ouro, pedaços pequenos faltando mais ainda reconhecível. Seus olhos de jade me encaram, e sinto minha cabeça latejar outra vez, mas ignoro a dor.
— Ela me disse que voltaria aos seus tempos de glória, um dia. Bastet queria justiça. Estava furiosa com os roubos, com os saqueadores que espalharam seus artefatos pelo mundo. Ela havia sido esquecida... ninguém mais a adorava.
Ele respira fundo.
— Eu perguntei o que deveria fazer. Como servi-la, como deixá-la... contente? E Bastet me disse em sonho: Renascerei.
Meu peito começa a apertar.
— Os membros da comunidade ficaram maravilhados com a notícia. Então nos preparamos, íamos escolher entre nós, aquele que fosse o mais digno. Mas então, a mais leal de todos se ofereceu para concebê-la, ela se destacou... Era uma honra, uma verdadeira prova de fé!
Ele me olha por cima do ombro.
— ... Sua mãe, Luara.
As palavras dele vibram dentro de mim como se minha mente se recusasse a absorvê-las. Essa história é fantasiosa demais para me fazer acreditar. Mas a forma como ele diz todas essas coisas... me faz duvidar do que é a realidade ou não.
— Isso é absurdo... — murmuro. — Você não passa de um homem louco, um sociopata, assim como todos os outros líderes de seitas! Não tem nada de especial em você, sua fé é uma ilusão!
Ele ignora minhas palavras afiadas.
— Pare de lutar contra a verdade, e aceite que você é a reencarnação de Bastet...
— Você é louco! Eu não sou essa coisa, eu não sou essa deusa ridícula que vocês adoram...
Ramsés sorri. Ele nem parece ouvir. Apenas continua, como se estivesse preso em uma profecia antiga. Qualquer coisa que eu digo a ele, entra por um ouvido e sai pelo outro. Ele está completamente cego por sua religião fantasiosa.
— Quando Luara entendeu o destino que te aguardava... — ele insiste em continuar. — ela fugiu junto de outro traidor. Ela traiu tudo que acreditava... Traiu Bastet. Traiu sua fé... E escondeu você de nós.
Meus pensamentos se embaralham.
Começo a entender as mudanças constantes de quando eu era pequena. Das noites em que eu perguntava a minha mãe onde iriamos dormir. Dos empregos provisórios dos meus pais, das casas insalubres que eles alugavam para morar. Da insegurança que eu via nos olhos cansados dela. Eles viviam fugindo... e eu não entendia o porquê de estarem sempre em alerta. Sempre com medo de algo...
— Foi por isso... — digo, quase para mim mesma. Compreendendo os comportamentos estranhos do passado. — Por isso a gente vivia se mudando. Nunca ficaram muito tempo no mesmo lugar. Nunca confiaram em ninguém... Naquele mês eles não conseguiram dinheiro... pediram àquele agiota e... — coloco a mão na testa, sentindo ela latejar. Minha nuca dói também, exatamente onde bati depois daquela queda. — Estavam fugindo de vocês... da Lua Negra...
— Sua mãe apagou os seus instintos felinos de você, quando era criança... Uma lavagem cerebral reversa... ela era boa em manipular as pessoas. — diz Ramsés, me analisando. — Me diga, quando você despertou? Quando começou a ser você mesma?
Me lembrei da queda. Do miado que ouvi antes de apagar.
— Isso não te interessa, eu não sei do que está falando! — afastei a mão da minha cabeça. Não iria continuar permitindo que ele pense estar me manipulando.
Ramsés apenas balança a cabeça, solene. Ele não parece ser do tipo que se abala. Se ele é assim tão calmo... então de onde vem a minha raiva?
— E o que você quer de mim agora? — pergunto, a voz áspera. — Já estragaram a minha vida. Me incriminaram durante dias. Me deixaram sozinha... e agora estou aqui, onde me queriam. O que vem agora?
Ele caminha mais um pouco e para diante de uma porta dupla, larga, cravejada de símbolos. Então olha para mim com compaixão fingida. Escuto passos atrás de mim e vejo dois homens que se aproximam com passos lentos.
— Nada disso foi em vão... — diz Ramsés, e caminho até ele com meus passos hesitantes. — Roubos que te garantem uma vida boa, uma fuga como qualquer outra. Você precisava desaparecer depois de tudo isso... Assim, quem iria te procurar? Quem daria falta? — seu sorriso se torna cruel. — Como achar uma mulher com dinheiro e riquezas suficientes para sumir?
Ele empurra as portas e meus olhos imediatamente vão para dentro daquela sala.
E lá está a mulher loira de antes, a mesma que me eletrocutou antes.
— Quem é ela? — pergunto. — Apenas uma ladra que a Lua Negra está pagando para me imitar?
Ramsés sorri e estende a mão para ela, como se a apresentasse.
— Essa é Sekhmet, minha filha. Assim como você, ela tem o meu sangue.
Meus olhos hesitantes vão em direção a ela.
— Ela é, minha meia irmã?...
Minha garganta aperta. Olho para ela. Cabelos dourados, olhos frios. Ela sorri como quem já venceu. Como quem nasceu esperando esse momento.
— Apesar de terem quase o mesmo sangue, não consideramos vocês duas irmãs. — diz Ramsés, os olhos indo de Sekhmet para mim. — Agora, Selinne... Você deve ceder seu lugar já que não o quer. Sekhmet vai assumir o manto. — diz ele, com suavidade cruel. — Ela é a nossa nova escolhida.
— Por que eu... faria isso? Por que não sou mais digna? — pergunto com medo da resposta.
Ramsés se aproxima. Seus olhos se tornam duros.
— Porque sua mãe desonrou Bastet. E você, Selinne... você carrega o sangue da traição. Não é mais digna de ter a graça.
Sekhmet me encara como se estivesse esperando minha rendição, eles esperam que eu não resista, que apenas dê o que eles querem. Sinto meu coração mais acelerado do que nunca contra meu peito. É meu instinto de fugir me alertando para dar o fora daqui.
— Eu não sou Bastet!... Mas se ela ainda vive em algum lugar dentro de mim, como diz... Me ferir, não é uma escolha sábia. Assim você quem será desrespeitoso!
Ramsés me olha calmamente, ele tem algo em mente e eu começo a entender. Na investigação de Bruce sobre as seitas que a Lua Negra financia, só tinha sociedades bizarras e agora começo a perceber que essa é uma delas... Eles vão me devorar.
Não metaforicamente — literalmente.
— Vocês... são doentes! — gritei, minha voz falhando entre a náusea e a fúria.
O silêncio caiu sobre nós depois que gritei. Ramsés apenas me observava, imóvel, os olhos cintilando com um prazer perturbador e nojento.
— Vale tudo pela nossa fé... — ele diz calmo. — Hoje todos aqui, vão receber um pedaço da graça de Bastet e aquela que ficará com a maior parte, é Sekhmet. — ele declara. — Como deve ser... e depois disso, quando a morte chegar, vão renascer como os filhos de Bastet, terão sete vidas para aproveitar. Serão belos gatos da noite! — ele diz cada palavra com um sorriso terrível, um sorriso que aumenta a cada segundo.
Sinto meu rosto ficar pálido. Agora compreendo o que aquela frase significa. Depois que eles me devorarem, e morrerem... vão renascer como gatos! Isso é bizarro e, ao mesmo tempo doentio demais. Meu corpo está tão chocado que mal consigo me mover. Senti meu estômago virar. Um calafrio percorreu minha espinha, os olhos arregalados.
— Não... — um sussurro escapa dos meus lábios. Eu não consigo acreditar nessa loucura toda, não mesmo! — Eu não vou facilitar para vocês, seus doentes de merda! — Meu corpo assumiu instintivamente a postura de luta antes mesmo que eu decidisse. Mesmo algemada, me recuso a ceder sem lutar.
O sorriso de Ramsés começa lentamente a sumir, quando ele vê dois homens mascarados se aproximarem. As roupas pretas, as luvas de couro, olhos invisíveis por trás das máscaras brancas. Um deles falou alto:
— Espere Ramsés, deixe que a verdadeira digna de Bastet se prove. Que a escolhida lute por sua vida... Vamos recompensar a vencedora. — ele diz calmo, se aproximando. O outro mascarado concorda com a cabeça.
— Selinne tem a força que buscamos, ela tem a coragem que precisamos. — diz o outro como mais um fanático.
Olhei para Ramsés, que fez um gesto com a mão, como quem concede algo generoso.
— Muito bem, se esse é o desejo dos demais líderes... então prepararemos a arena.
Suspirei aliviada por ter ganhado uma chance de lutar pela minha vida.
Sekhmet se aproximou, pegou a chave das minhas algemas no bolso do macacão colado.
— Que vença a melhor... — é tudo o que ela diz, enquanto destranca as algemas dos meus pulsos. Seus olhos escuros nem mesmo desviam dos meus enquanto faz isso.
— Já aviso que não vou pegar leve, não ligo que seja sangue do meu sangue. — me afasto, esfregando meus pulsos. Estive pressionando as algemas sem perceber, machucando minha pele.
Ramsés sorri outra vez, nos olha como se escolhesse sua favorita entre nós duas. Um olhar que fez meu estômago embrulhar, ele definitivamente não é o pai do ano...



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