38 - Bastet
Cheguei à Zona Portuária com o coração disparado.
A Doca 3A, Berço 5.
E parecia deserta.
O cheiro de maresia misturado ao óleo dos contêineres corroía o ar parado, e a única coisa que se ouvia era o som dos meus saltos estalando contra a madeira úmida da plataforma.
Nada.
Nem uma alma viva.
Fiquei imóvel por alguns segundos, e comecei a me perguntar se tinha chegado tarde demais. O atraso... a luta com Bruce... E se tivessem ido embora? Se pensaram que eu não viria...? Um pânico seco se formou na minha garganta. Dei um passo para trás, prestes a correr até o fim da doca e gritar por alguma resposta, quando vi.
Um barco.
Ele surgia como um fantasma sobre as águas escuras, as luzes internas apagadas, deslizando devagar até o berço onde eu esperava. O casco cinzento se aproximou em silêncio até parar com um rangido grave.
Dois homens mascarados surgiram na borda do convés, apontando armas para mim.
— Por favor, entre no barco. — um deles pediu, a voz abafada pela máscara felina.
O instinto gritou para correr. Mas eu não podia hesitar. Não podia mesmo...
Dei um salto e caí no interior do barco, mantendo os joelhos flexionados, como um gato em defesa. Eles não disseram mais nada. Apenas jogaram uma algema aos meus pés.
— Agora prenda as mãos...
Olhei para eles sem desviar o olhar. Só depois de alguns segundos de silêncio obedeci. As algemas se fecharam nos meus pulsos. Apesar disso, não me senti presa, eu sabia como escapar de algemas, eram minha especialidade.
Foi quando senti um movimento atrás de mim. Alguém tão silencioso que eu não ouvi nem vi chegando.
— Fica quieta e colabora. — A voz era feminina. E um saco preto cobriu minha cabeça.
Fui empurrada até um dos cantos do barco. Me sentei. A madeira era áspera, úmida. O barco começou a se mover logo depois, deixando o porto para trás.
Silêncio.
Ninguém dizia nada.
Eu respirei fundo, forçando a voz a sair.
— ... Minha gata está viva? Está segura?
Silêncio. Um segundo, dois.
E então, uma mulher respondeu com calma:
— A sua gata está bem... Está no lugar pra onde estamos indo.
Engoli em seco.
Ela estava lá.
Isso bastava.
Mesmo que fosse uma armadilha, mesmo que eu estivesse indo direto para a boca da morte... ela estava viva e talvez eu pudesse negociar com eles, a minha liberdade pela de Isis. Ficamos navegando por mais um tempo. Não sei quanto. O balanço constante fazia meu estômago revirar. O cheiro de sal, combustível e mofo invadia o tecido que cobria meu rosto. Era nojento e horrível de respirar.
E então o motor parou.
Fui puxada com força. O salto do meu sapato afundou na areia, e eu caí de joelhos. A dor foi rápida, mas insignificante diante da sensação estranha sob meus pés. Parecia ser areia. Estávamos em terra firme. Uma ilha?
A brisa era diferente. Havia umidade no ar, mas também uma leve sensação de calor. Quando tiraram o saco da minha cabeça, precisei piscar algumas vezes. Ainda conseguia ver a silhueta da cidade à distância. Parecia ser Metropolis. Mas estávamos longe o bastante para estarmos sozinhos.
A segunda coisa que vi foi ela.
Uma mulher jovem, loira como eu. Usava um macacão preto de látex que reluzia sob a luz fraca da lua. O cabelo, penteado como o meu. Até o batom parecia igual.
Meu estômago virou.
Ela me olhava com um sorriso quebrado.
Era ela.
A mulher que estava se passando por mim nos últimos dias. Estragando o pouco de paz que a minha vida tinha.
— Por que está fazendo isso?... — perguntei, me levantando com esforço. — Por que está me imitando? Por que trabalha com esses doentes?
Ela se aproximou devagar, os olhos vidrados, como se não piscassem há horas. Um brilho perturbador vibrava no olhar dela.
E então... ela passou a mão no meu cabelo.
— Quero ser como você, Selinne... — sussurrou, como se estivesse falando com um espelho. — Uma bela gata da noite...
— Essa frase de novo?
Antes que eu pudesse reagir, um estalo agudo.
Dor.
Meu corpo enrijeceu na hora. O choque me atravessou com força pelo esqueleto. As pernas cederam. Os músculos travaram. E a última coisa que vi foi o céu nublado girando acima de mim, enquanto desabava na areia.
Escuridão total...
(...)
Acordo com um gosto metálico na boca e a nuca latejando, o local do choque na barriga ainda formiga. O teto acima de mim brilha em dourado, com desenhos de olhos, gatos, símbolos antigos que não reconheço.
Pisca uma luz suave por entre as colunas de mármore branco e dourado. Me sento com dificuldade na cama. Estou em um quarto luxuoso — dourado demais, como se fosse um daqueles cenários de filmes egípcios. Esculturas de gatos ocupam cada canto, me observando em silêncio com olhos de jade e lápis-lazúli.
E minhas roupas... não são minhas.
Estou usando um vestido vermelho, longo, com um decote profundo e tecido pesado. Luxuoso, brilhante, colado no corpo como se fosse feito sob medida. As algemas ainda prendem meus pulsos, apertadas, mas não a ponto de cortar a pele ou arranhar.
Me levanto cambaleando, atravesso o quarto e bato na porta com força. Um chute com meus pés descalços. Depois outro. Estou presa.
— Me tirem daqui! — grito. — Agora! Seus psicopatas de merda!
O som ecoa outra vez... e então, o que escuto me desmonta.
Um miado.
Alto e familiar.
— I-Isis? — chamo, aproximando a orelha da porta.
Ela mia de novo. É ela. Eu sei. Reconheceria aquele som em qualquer lugar. Meus olhos se enchem de lágrimas, o coração se contorce. Eu temia tanto que eles tivessem machucado ela, feito alguma coisa. Temia não ouvir mais o seu miado. Seu ronronar...
— Isis, minha menina, sou eu... eu tô aqui...
A fechadura gira.
A porta se abre devagar.
Então um homem aparece na porta. Meia-idade, pele quase morena como bronze antigo, olhos escuros, frios. Segura Isis no colo, como se ela fosse um troféu. Ela não tenta fugir, mas me olha, e me reconhece. Então mia outra vez.
— Quem é você? É... o líder dessa seita?
— Me desculpe pelo choque, minha querida... — diz o homem, com um sorriso que arrepia minha espinha. — Meu nome é Ramsés... e sim, eu sou o pai dessa comunidade.
— Solta ela. — sussurro. — Solta a minha gata... agora. Deixa a gente ir. — mantenho meu olhar firme nele, embora suplicante. — Por favor...
Eu sei que não vai funcionar. Mas eu tento mesmo assim.
O sorriso dele não muda.
— Ir embora, no meio da festa? Isso seria extremamente rude.
— Que festa? — pergunto, a voz falhando.
Ele não responde de imediato. Só me observa. Me analisa como se esperasse algo grandioso. Então sorri como se tivesse encontrado.
— A festa é para você, Bastet. Para celebrar seu retorno ao nosso lar. Mas hoje, é um dia importante, me atrevo a dizer que hoje é o dia mais importante de todos!
— Isso aqui não é minha casa.
— Ah, mas é. — Ele sorri, como se estivesse falando com uma criança confusa.
Depois, se aproxima e baixa o tom:
— Agora, me acompanhe. Se não obedecer... — ele levanta Isis pela nuca, os olhos fixos nos meus — eu quebro o pescoço dela, aqui mesmo.
Minha respiração trava no peito.
Minhas pernas andam antes que eu mande.
Caminhamos por corredores que parecem ter sido arrancados de um templo egípcio. Hieróglifos nas paredes, estátuas douradas, tapeçarias com desenhos de mulheres de olhos felinos e luas crescentes. Tudo rico, antigo e perturbador.
Vejo que pessoas passeiam pelos corredores. Homens e mulheres de terno escuro, vestidos elegantes... todos usando máscaras felinas. Quando passo, eles se viram e alguns se ajoelham.
Outros apenas me observam. Como se eu fosse uma visão sagrada.
Sinto o estômago embrulhar. A cena parece um pesadelo religioso. Não sei o que eles esperam de mim, mas eu sei de algo, é certamente perturbador. Ramsés me conduz até uma varanda alta, com colunas abertas para a vista do mar. Vejo Metropolis ao longe e árvores escuras em volta desse lugar, estou mesmo em uma ilha.
Abaixo, uma multidão em cima de um piso de pedras antigas. Conto cinco com máscaras brancas, acredito serem as líderes abaixo de Ramsés. Homens e mulheres mascarados se aglomeram em silêncio. Ao me verem, todos... todos se ajoelham.
Ramsés me entrega Isis.
Ela mia e se enrosca nos meus braços, trêmula. E eu a abraço firme.
— Veja... — diz ele. — todos esperavam pelo seu retorno... tínhamos fé de que te acharíamos outra vez... Por isso mantemos a nossa fé viva até que você retornasse!
Dou um passo para trás, o vestido arrastando no chão de pedra. Quero fugir, mas não sei se vou muito longe.
— Você puxou a beleza de sua mãe... Luara. E se tornou uma mulher impressionante.
Olho para ele, meu corpo congelado.
— ... Conheceu a minha mãe?
Ele apenas sorri e faz um carinho na cabeça de Isis, sem pedir.
— Nós nos conhecemos há muito tempo. Ela fazia parte disso, era uma das fiéis mais devotas!... — seu olhar endureceu. — Então a fé dela começou a enfraquecer quando se apaixonou por outro membro... ele era instável, tinha a fé fraca e envenenou a mente dela com dúvidas...
— O meu pai... — sussurro.
Mas Ramsés nega com a cabeça, seu olhar mais frio.
— Você está enganada, minha querida.
Ele se curva em minha direção, seu sorriso crescendo.
— Eu sou o seu pai. — ele encara os meus olhos. — Sou o pai de todos... mas você, Selinne... você é a minha filha legítima.
Minha garganta fecha. Um riso escapa, nervoso, tremido, amargo.
— Vocês são todos malucos... — digo, olhando em volta.
Volto-me para a multidão, segurando Isis com força.
— Estão me ouvindo?! Vocês são doentes! Loucos! Lunáticos! Malucos de merda!
Eles não reagem à minha provocação.
Nenhum murmúrio. Nem mesmo se movimentam.
Todos continuam ajoelhados.
Todos me encaram com os olhos vidrados.
E é nesse silêncio que eu percebo... Eles realmente acreditam nisso.
— Era esperado que você se recusasse a acreditar na verdade. — diz Ramsés. — Mas eu vou provar que você é especial Selinne, e não apenas uma mulher com um Alter-Ego. — ele olha para um homem mascarado, ele se aproxima e toma Isis dos meus braços.
— Não! — grito, tentando intervir. — Deixa ela em paz!
Ramsés dá um passo à frente, me olhando como se visse dentro da minha alma.
— Venha comigo, Bastet... — ele estende a mão. — Sua gata ficou sem você por algumas horas antes, então pode ficar mais alguns minutos.
Olho para ele e depois para Isis, sei que não tenho escolha. Se obedecer ele for a única maneira de manter Isis viva, então é isso que devo fazer...



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