37 - Mesmo se fosse assim
Bullock bufou ao me ver entrar pela janela entreaberta. Eu conhecia aquela tranca como a palma da minha mão.
— Caramba, você já ouviu falar em porta? — resmungou, dando um passo para trás com a mão no coldre. — O que houve com o seu rosto? Foi ela?!
Não respondi.
Ainda estou de mau-humor pela atitude de Selinne. Eu sabia das coisas que ela era capaz, mas depois de tudo... Não cogitei que ela pudesse agir daquela forma.
A sala de Selinne estava um caos, mas não o caos de sempre. A luz da luminária amarela clareava o cômodo, dois policiais além de Gordon e Bullock estavam lá. Analisando cada cômodo em busca de respostas.
Gordon se aproximou assim que me viu, tirando uma prova ensacada do paletó. Preferiu evitar tocar no assunto da ferida.
— Acabamos de encontrar isso na lixeira da cozinha. — disse ele, estendendo o braço. — Parece ser um recado picotado. E parece ser a letra da própria Selinne. — Ele me olhou firme e desconfiado. — Como você explica isso?
Peguei com cuidado entre meus dedos enluvados.
— Caramba e da onde que ela arrumou aquela moto? — Harvey resmungou com outro policial.
Fui até a mesa da cozinha para espalhar os papéis picotados, nem me sentei. As palavras estavam desalinhadas. Comecei a montar, papel por papel, como um quebra-cabeça. Primeiro o rodapé, depois os cantos, então o corpo central da mensagem. Demorei apenas alguns segundos. Meu coração, apesar de estar com os batimentos lentos, batia forte. Como se ele quisesse me apressar.
Quando completei, li em voz alta para que Gordon e Bullock ouvissem. Eles trocavam olhares, perceberam a minha mudança de humor, era mais fria que o normal.
— "Se quiser ver sua gatinha de novo, vá sozinha à Zona Portuária. Encontre o barco na Doca 3A — Berço 5. Esta noite. Sem truques, sem polícia, sem Batman... Ou nunca mais a verá."
A última palavra, sublinhada em tinta preta, miava para mim como um insulto. Posso imaginar a frustração de Selinne ao ler isso. Era como se o passado criminoso dela, fosse jogado em seu rosto.
Gordon soltou um suspiro denso, a gravata frouxa no pescoço.
— Oh, meu Deus... Ela dizia mesmo a verdade. Alguém está se passando por ela.
— Viu? Eu sabia que ela não estava envolvida no roubo. — disse Harvey, para a minha surpresa. — Mas essa... Copycat teve realmente muito trabalho, ao ponto de copiar até a letra e estilo da Mulher-Gato.
Gordon olhou para ele e revirou os olhos.
— Copycat? — zombou com ironia. — Sério Harvey?
— O quê? Só eles podem dar nomes a si mesmos? — Harvey cruzou os braços.
Permaneci em silêncio por alguns segundos, os olhos fixos na mensagem.
— O que mais encontraram? — perguntei, sem encará-los. — Para virem prender ela, em vez de chamar para um interrogatório. É porque tem algo grande. — minha voz saiu baixa, quase um pensamento em voz alta.
Harvey se aproximou com outro saco plástico.
— Encontramos isso na cena do último roubo, na boutique "Diamond" no Distrito Fashion. Aconteceu na madrugada passada, a perícia passou a manhã rastreando o código genético. Este é o DNA de Selinne. Bateu com o banco de dados que temos.
No saco, vi os fios de cabelo. Longos, loiros, femininos. Quase translúcidos sob a luz. Era dela.
— E aí? Como explica isso? — disse Gordon, insistindo como se eu soubesse alguma coisa. — Mesmo que ela seja inocente, todas as provas estão sempre contra ela.
— Qual é... — Harvey suspirou. Parecia acreditar em Selinne, mas ao mesmo tempo também duvidava dela.
— Não foi ela. — minha voz saiu firme, indo em direção ao quarto dela.
— Como pode ter tanta certeza? Talvez ela também esteja te... — a voz dele diminuiu gradualmente enquanto me olhava.
— O quê? — Harvey nos olhou.
Gordon não disse nada, apenas escutei seu sorriso.
No quarto, nada revirado além dos lençóis preguiçosamente arrumados. Os saltos estavam em ordem na prateleira da parede, e os quadros com as fotos de Isis em perfeito estado sob o criado mudo. Já na penteadeira, algo chamou minha atenção. Um pente novo, ainda com o preço no cabo.
Eu nunca vi aquele. E a cor era diferente do anterior, o que ela costumava usar. Me aproximei da penteadeira, o espelho refletindo minha máscara. Abri a gaveta abaixo, onde ela guardava suas maquiagens. Como pensei, o pente que ela usava com frequência... não estava lá.
O antigo era o modelo certo. Os dentes largos, polidos. Material que não danifica os fios mais finos.
Voltei para a sala outra vez.
— Roubaram um pente. Plantaram os fios na cena do crime. Novamente tentando incriminá-la. — Minha voz saiu baixa, mas firme. — Sabiam que ela correria para salvar a gata, e sabiam que vocês iriam atrás dela, emitindo um alerta de fuga.
— Maldição... O que ela fez para esses malucos? — Harvey me olhou.
— Não sei... — devolvi o saco com os fios. — Mas eu vou descobrir o que querem com ela.
O comissário levou a mão ao queixo, pensativo. Então olhou o relógio.
— A essa hora... Ela já embarcou.
Sem responder, fui até a janela. Assim que senti o vento gelado, o ardor da pele ferida latejou. Mas não era isso que doía de verdade. Aquele arranhão era o menor dos meus problemas.
Lancei o gancho.
(...)
Desci pela plataforma inferior da Batcaverna, os ombros pesados demais para endireitar.
Robin acendeu assim que minha presença foi detectada.
— Conseguiu encontrar Selinne? — disse a voz de Robin, mas sua voz abaixou assim que notou meu rosto ferido pelas garras dela. — É, parece que sim... devo acordar a Batgirl para fazer um curativo nisso?
Olhei para ela recarregando em uma estrutura de metal.
— Não. Como está indo com a busca? — peguei um curativo no meu cinto e coloquei sobre a bochecha, as células se fecharam aos poucos. A ardência não me incomodava.
— Estamos progredindo. Restam apenas três ilhas na lista de triagem.
— Quanto tempo? — perguntei, com meus dedos apertando o encosto da cadeira giratória, sem me sentar.
— ... Estimativa atual: duas horas e quatro minutos para conclusão total da varredura geográfica, análise topográfica e detecção térmica noturna. Operando no limite máximo de velocidade.
Fechei os olhos, a respiração acelerando de maneira desconfortável.
Duas horas?
Ela pode estar morta em cinco minutos lá.
Dei um passo para trás. Outro.
A mão bateu na mesa de aço com força seca, o impacto ecoando pela caverna e espantando os morcegos. As luzes do monitor tremularam por um segundo. Robin manteve um breve silêncio, analisando minha expressão corporal.
— Você está bravo... Com raiva? — ele inclinou a cabeça, detectando a minha pressão cerebral. — A raiva é um sentimento forte e intenso de irritação, é importante aprender a gerenciar a raiva de forma saudável, pois ela pode afetar negativamente as relações e a saúde mental... Respire fundo, pense em um lugar calmo.
— Cala a boca!
Robin piscou, parado e me encarando.
A imagem de Selinne empurrando meu corpo do topo do prédio se repetia como uma maldição. Lembro daquele momento como se estivesse em câmera lenta. Seus cabelos loiros voando com o vento. O olhar ferido e marejado dela me vendo cair. A garra suja de sangue, pingando o meu sangue e sendo levado pelo vento...
A máscara parecia mais apertada, o capuz deixava meu pescoço mais quente que o normal. E a minha respiração ofegante ficava presa na garganta. Meu sangue parecia borbulhar nas minhas veias. Era algo que eu conhecia pouco, pânico. Um pânico silencioso.
— Patrão? Encontrou Selinne? — perguntou Alfred saindo da passagem do relógio. Assim que viu minha frustração, parou de andar.
— ... Eu devia tê-la impedido. — A frase saiu mais rouca do que eu esperava. — Devia ter sido mais rápido. Mais... violento como a situação desesperadamente pedia. Se eu tivesse a nocauteado, poderia mantê-la viva e segura... — apertei os punhos.
— Mesmo que a ferisse?
— Mesmo se fosse assim...
— ... Mesmo que ela o odiasse, depois de acordar?
— Mesmo se fosse assim... — minha voz saiu baixa, porém firme.
— Mesmo que ela o culpasse?... — Alfred suspirou.
— ... Mesmo... se fosse assim... — olhei para ele, a frustração crescendo no peito. — Mesmo que me culpasse pela morte de Isis. Mesmo que... — A frase morreu lentamente. — Eu não ligaria de fazer a coisa certa, não importa o quão errado fosse... mas eu... eu não fiz dessa vez. Não como fiz com o Coringa, ou o Duas-caras, onde precisei priorizar algo, sacrificar minha humanidade e moral pelo bem da cidade...
Andei até a parede dos equipamentos. Não havia nada ali que fosse útil para a ocasião. Nenhuma tecnologia, nenhuma arma capaz de garantir que ela voltasse viva. Nem mesmo com a tecnologia mais avançada do mundo, eu não poderia impedir o que já passou.
— A senhorita Selinne vai ficar bem, ela é esperta... — Alfred tentou me acalmar. Mesmo sabendo que não funcionaria. — Precisa confiar nela, patrão... é tudo o que você pode fazer por agora, em vez de se lamentar pelo que já passou.
Selinne é mais importante para mim do que ela poderia imaginar. Ela é mais do que uma amiga, mais do que alguém que amo. Selinne podia não se importar com a própria vida... brincar com ela como se fosse algo insignificante ou substituível.
Mas eu...
Eu me importava.
Se ela morrer, não sei o que restará de mim. Não sei como continuar fazendo o que faço. Lutando por uma cidade que insiste em se afundar mais a cada dia. Eu sei que Gotham nunca ficará limpa da sujeira e da escória, mas Selinne me motivava a continuar. Porque eu sabia que em algum lugar no meio de toda aquela bagunça... havia alguém como ela. Alguém que tentava recomeçar, alguém que buscava por segundas chances.
Encostei as mãos na bancada, a cabeça abaixada.
— Encontre essa maldita ilha, Robin... — murmurei.
— Entendido. — respondeu Robin.
Fiquei ali, e Alfred em silêncio ao meu lado, como um apoio emocional.
O tempo, era meu inimigo.
A cada segundo, ela se afastava mais.
Mas jurei que traria ela de volta...
Nem que tivesse que morrer tentando.



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