36 - Sou sua âncora?

 

Meu coração batia descompassado, enquanto eu corria e pulava pelos telhados de Gotham. A noite estava fria, e a cidade cheirava mal, era pior que nos dias anteriores, ou talvez fosse apenas a minha impressão. Isis estava em perigo e eu precisava agir rápido, não queria que ela continuasse nas mãos deles. Eu corria na direção sudeste, cada vez mais perto da Zona Portuária. Cada batida do meu coração, era como uma contagem regressiva, minhas pernas doíam pela distância que eu percorria correndo, e eu sabia que qualquer tropeço ou má aterrisagem, poderia ser fatal, tanto para Isis quanto para mim.

Mas eu não me importava comigo.

Eu só precisava chegar na Doca 3A, e no Berço 5.

Só isso, o resto não importava.

Assim que pisei no concreto do próximo prédio, meu corpo travou. Como se algo ali estivesse... errado. Eram meus instintos antigos, me avisando que ele estava ali.

— Pare de fugir, assim é pior. — disse uma voz vindo das sombras.

Meu coração deu um pulo e senti minha pele arrepiada. A silhueta do Batman me encarava, envolta nas sombras de outro prédio. Sua capa esvoaçava com o vento, e seus olhos se mantinham firmes em mim

— Bruce...! — eu não esperava vê-lo tão cedo. Ele foi rápido em me achar dessa vez.

Ele deu um passo à frente. Não havia raiva em sua voz, apenas curiosidade e um leve desapontamento pela minha atitude.

— Está fugindo da polícia, por quê? Por que não se entregou ou foi ao interrogatório, como nas vezes anteriores?... — algo na sua voz dizia que ele suspeitava de algo, mas apenas queria ver a minha resposta.

Minhas mãos se fecharam em punhos. Queria dizer a verdade. Queria gritar sobre Isis, sobre a seita, sobre a carta perto do pote de ração. Mas a imagem da minha gata me olhou de volta, frágil, assustada. Eles foram bem claros ao dizer que não queria o envolvimento do Batman ou da polícia.

— Eu...! — minha voz falhou, diminuindo. — Eu não posso te contar agora...

— Tem que confiar em mim, Selinne. — seus olhos brancos insistiam.

— Eu confio, Bruce... Mas isso... isso é algo que eu preciso fazer sozinha. Depois eu explico, eu juro! Não sou uma criminosa...

— Selinne, é a seita outra vez... — ele concluiu. — Seja lá o que for isso, está fazendo exatamente o que eles querem, por isso... Precisa vir comigo agora.

Balancei a cabeça, eu não podia deixar que ele me entregasse a Gordon novamente.

— Não posso...

— Não seja imprudente. — ele disse calmo, mas insistente. — Você sabe o que acontece quando age sozinha, é durante o desespero e a cabeça quente que faz besteira.

— Dessa vez é diferente, eu não tenho escolha. — dei um passo atrás. — Minha vida também não é mais a mesma de antes, você sabe. — murmurei

— Se continuar com isso, vai jogar tudo o que construiu fora. Já sabe disso, tivemos essa mesma conversa antes. — ele avançou, com a capa dançando atrás dele. — Ao menos me diga o que te motiva agora, se não é o roubo... então, por que está fazendo isso?

A raiva me pegou antes que eu pudesse segurar

— Porque levaram ela!... — gritei, sentindo arrependimento em seguida. — Levaram a Isis! E me disseram pra não envolver você, ou a polícia. Sem truques... — engoli as palavras.

Ele ficou em silêncio, pensando no que eu disse

— Selinne... — Seus olhos buscaram os meus. Mesmo que não dissesse, ele queria que eu parasse. Como se não valesse a pena me arriscar.

— Eu não vou arriscar a vida dela... — continuei, quase sem ar. — Você não entende... — arfei. — Eles sabem onde eu moro. Sabiam o nome dela. Sabiam que você é importante pra mim... eles me conhecem, e eu nunca estive segura como eu pensava estar! — gritei, a raiva e a frustração ainda mais visível na minha voz cansada.

— Você não está sozinha como pensa, Selinne. Muito menos esteve desprotegida. — ele respondeu, mas eu me recusei a acreditar. — Se entregar à polícia é a única forma de manter sua inocência. Eu posso lidar com a seita no seu lugar

Meu coração acelerava, aquela conversa estava me fazendo perder um tempo valioso.

— E se não der tempo de investigá-los, como você acha que vai dar? E se, enquanto você tenta lidar com eles, eles matarem a Isis? — cuspi as palavras. — Você conseguiria viver com o peso dessa falha? Porque eu não consigo! Não posso arriscar...! Eu não posso! — balancei a cabeça.

— Eu prometo que não vou falhar, que vou trazer ela de volta! — sua voz se ergueu um pouco, a súplica estampada em sua voz, mesmo que estivesse a controlando. — Mas você precisa confiar em mim, eu tenho recursos, posso fazer isso!...

— Eu confio... — respondi, a voz mais baixa. — Só não o suficiente pra entregar a única chance que tenho!

Virei, correndo e pulando no telhado do prédio a minha direita.

— Cat! — Ele me seguiu.

O som das botas dele me alcançando pelos telhados ativava uma lembrança do nosso passado de inimigos. Meus passos aceleravam junto com a raiva e o sentimento de urgência que crescia cada vez mais no meu peito. Olhei para trás, e o vi, ele não ia desistir, não mesmo.

Saltei por cima de um vão estreito entre prédios, rolei pelo chão e me levantei num piscar de olhos. Quando achei que tinha o despistado, ele surgiu na minha frente — mais rápido, mais preciso, sempre um passo à frente.

— Me escuta, Selinne...! — ele tentou de novo, tirando suas mãos debaixo da capa e erguendo levemente. — Se você for, pode ser que nunca mais volte!

— Eu não me importo! — explodi de raiva. — Eu preciso tentar...! Eu não ligo se algo acontecer comigo, apenas não posso deixar que algo aconteça a Isis!

Ele ficou em silêncio, parado por poucos segundos. Me analisando com paciência, como se tivesse todo o tempo do mundo.

— ... Não faça isso. — ele sussurrou, abaixando suas mãos lentamente

— Sai da minha frente!... — rosnei, minha voz alta e irritada.

— Não vou...

Suspirei. E então, fiz o que não queria

Me preparei para lutar com ele, de novo.

— Não me obriga a fazer isso com você, Bruce... — encarei seus olhos com ferocidade, sentindo a raiva queimar na minha barriga.

— Já está fazendo... — seu olhar era impassível.

Avancei.

Ele tentou me segurar, mas desviei, chutei a lateral do corpo dele e empurrei com o ombro. Ele revidou com precisão, me puxando pelo pulso. Girei no próprio eixo, chutei a costela dele e me afastei de novo. Bruce me analisou, pensando se valia a pena ou não, pegar pesado. Sua armadura era resistente, e meu corpo já doía pelo impacto.

Avancei outra vez, tentei chutar seu ombro, mas ele ergueu os pulsos, bloqueando meu ataque. Dei outro chute, na esquerda agora, mas ele segurou o meu salto e me girou. Quando me soltou, aterrissei de pé, evitando cair. Ele me detia, mas não atacava.

— Selinne, pare. — ele pediu, erguendo as mãos outra vez.

Não queríamos nos machucar, mas não iriamos ceder terreno.

— Não posso... e não vou parar até sair daqui. — apertei meus punhos

A cada soco, a cada chute, eu sentia a culpa apertar no peito. Eu não queria fazer isso, não queria machucar alguém que só estava tentando me proteger. Mas eu também não podia parar, porque quem eu tinha a intenção de proteger, foi levada.

— Você não entende! — gritei, a voz rasgando minha garganta enquanto girava no ar, desferindo um chute alto contra o ombro dele.

Bruce cambaleou, mas se manteve firme como sempre. Era difícil derrubá-lo, era quase impossível vencê-lo.

Ele tentou me fazer desmaiar com um gás paralisante, mas os anos fugindo dele, já tinham me feito imune. Mesmo assim, eu sabia que ele tinha outras formas de me parar completamente. Bastava um choque, ou um golpe que removesse o meu ar. Contudo, ele só não usava porquê... era contra mim, a mulher que esteve com ele a noite toda ontem. A mulher que escutou em sussurros excitantes que ele a amava.

— Eu entendo mais do que você pensa. — ele respondeu, desviando do golpe seguinte. — Só estou tentando impedir que você se perca outra vez!

Minhas garras cortaram o ar, zunindo próximas ao queixo dele. Ele se defendeu com o antebraço, recuando. O ritmo da luta aumentava a cada minuto. Eu queria que ele parasse. Que me deixasse ir. Que confiasse em mim. Mas, mais do que isso... eu queria que ele sumisse da minha frente.

Porque ele estava me fazendo hesitar. E eu não podia fazer isso, não podia deixar Isis.

— A Isis... ela é tudo que eu tenho, Bruce! — minha voz estalou com uma dor que me engasgava. — Você nunca vai entender o meu sentimento! Depois que o Pette sumiu, depois que eu me afundei naquela merda toda... ela foi a minha luz. Quem comeu comigo. Quem me fez levantar da cama... Não estou dizendo que ela fez mais por mim, do que você... Apenas que... nem você esteve comigo tanto quanto ela!...

Ele hesitou por um segundo. Só um.

— Enquanto você tinha a sua vida dupla, ou sumia por dias para enfrentar sei lá o quê... Era ela quem estava comigo durante a minha solidão... Que me dava forças e motivação para não me afundar mais ainda. Ela me lembrava do meu propósito como a Mulher-Gato, ela me lembrava que tinha animais lá fora como ela, que precisavam de atenção e cuidados... A Isis é a minha parte felina... Minha alma gêmea, e eu não espero que você... — senti minha voz embargar. — ou qualquer outra pessoa entenda... Então me deixa ir! — continuei, avançando outra vez. — Me deixa cuidar disso! Eu não vou cruzar os braços naquela sala de interrogatório e esperar você tentar salvá-la!

— ... Selinne, você vai acabar se matando!

— Eu não ligo! Você não decide o que posso, ou não fazer! — a raiva me dominou.

Ataquei com tudo.

Dessa vez, sem freio algum.

Minhas garras acertaram de raspão a lateral do rosto dele. O som do tecido rasgando foi seguido de um gemido baixo. Ele recuou, levando a mão à bochecha. Sangue escorreu entre os dedos enluvados.

Congelei.

As minhas mãos tremeram quando olhei para elas. As garras estavam sujas de sangue.

O sangue dele.

Eu nunca fui tão longe antes, a raiva era um monstro em mim, que despertava nas horas erradas.

— B-Bruce... — balbuciei.

Ele levantou os olhos lentamente para mim. Havia dor neles. Não a dor física — ele suportava essa com facilidade. Era outra. Uma dor mais íntima entre nós. Mais triste.

E então... ele fez o impensável.

Levou os dedos até a máscara e a puxou para trás, revelando o rosto por trás do monstro. Do capuz negro. Ele me encarou com o rosto exposto ao mundo, sem medo que alguém pudesse o ver ali. Então percebi o quão desesperado ele estava, para que eu pudesse ouvi-lo.

— Selinne... — começou, com a voz baixa. — Entenda que estou disposto a deixar de ser o Batman... — sua voz tinha uma serenidade que me deixou desconfortável. Era humanidade por trás daquele símbolo temido por todos. Bruce e Batman fundidos em um só. — Depois de tanto tempo lutando contra os criminosos dessa cidade... tudo o que eu quero agora, é uma vida com você. Sem segredos ou tensões mal resolvidas... — o sangue escorria por seu rosto, enquanto seus olhos verdes e desesperados se mantinham fixos aos meus. — Apenas você.

As lágrimas começaram a cair antes que eu pudesse impedi-las.

— Mas se você cruzar essa linha outra vez, não haverá um modo disso tudo chegar ao fim... porque enquanto você não parar... — ele deu um passo à frente, meu coração disparando sob o peso de seu olhar. — Eu não vou.

Ele... não vai parar? Meu mundo pareceu congelado, como se nada mais importasse além da nossa presença. Ouvir aquilo me deixou em choque, e a raiva em meu peito deu lugar a outra coisa: tristeza profunda.

Saber que não teremos paz em nossas vidas, enquanto um continuar cruzando limites que incomodam o outro... Isso me enche de desesperança. Porque me conheço e sei que nunca poderei parar.

Dei alguns passos em direção a Bruce, voltando a ouvir os sons do mundo lá fora. Das ruas abaixo. Toquei o símbolo em seu peito, percebendo que nossa relação é muito mais complicada do que parecia. Ele manteve seus olhos em mim, minhas mãos tremulam alcançaram seu rosto ferido.

— Você... — solucei, tentando me manter calma. — Você me deu mais do que eu achei que merecia. Tentou me dar uma vida de verdade. Uma chance de felicidade. Obrigada por isso... — me aproximei e o beijei, Bruce retribuiu.

— Selinne... — ele disse com o rosto ainda próximo ao meu. — Assim como Isis é a sua alma gêmea... você é a minha âncora.

Olhei para ele, meus olhos marejados. Mas seus olhos cheios de ternura e tristeza. Aquela tristeza que apenas eu consigo enxergar.

— Graças a você, ainda tenho minha humanidade. Mesmo que um resquício dela... Tentar te manter no caminho certo, é o que me mantém na linha também. — ele sussurrou contra os meus lábios. — Por isso, não vou parar, por sua causa.

O vento forte passou entre nós, e minhas lágrimas voaram geladas do meu rosto. Me afastei lentamente, mas Bruce me puxou, beijando outra vez. Como se quisesse que aquilo durasse mais, mesmo que mais um pouco.

— Bruce... eu sinto muito por tudo isso. — falei baixo — Você já fez muito por mim, mas ainda não acho que eu mereça tudo isso... Algumas pessoas não têm salvação... — olhei dentro de seus olhos. — E eu... sou uma delas.

Quando ele percebeu meu olhar baixo, foi tarde, levei as mãos ao peito dele e o empurrei com toda força que restava.

Bruce caiu do parapeito atrás dele.

A capa do Batman voou para cima, e o gancho saiu do cinto e agarrou o parapeito da varanda abaixo, detendo a queda com um tranco seco.

— Selinne! — ouvi ele gritar, ativando o gancho para puxá-lo para cima. Mas quando ele voltou para o prédio, eu já não estava mais lá.

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