35 - Pegue-me se for capaz
Na manhã seguinte, quarta-feira, depois de um banho juntos. A toalha que enrolei no corpo ainda estava úmida, e o cheiro dele, do sabonete amadeirado, do toque das mãos firmes e pacientes... tudo ainda estava na minha memória como se fosse sonho — mas não era. E que bom.
Bruce estava ali, encostado na porta, já vestido, e com seus cabelos molhados. Mas com aquele olhar meio encantado que me fazia esquecer que eu ainda devia respirar. Me troquei de pressa, usando uma blusa dele, peguei emprestada. Mas que eu não tinha a intenção de devolver, mesmo que estivesse grande em mim.
— Vem comigo — disse ele, estendendo a mão, assim que me viu sair.
Segurei sem hesitar.
Descemos até a garagem particular de sua mansão. As luzes se acenderam aos poucos, revelando uma fileira de carros luxuosos, impecáveis, todos alinhados como se fossem parte de uma coleção de museu. Mas não foi nenhum carro que me chamou atenção.
No centro, sob uma capa preta e ao lado de um suporte com uma pequena chave prateada, estava ela: Uma Moto, pelo formato no tecido.
Meu peito acelerou, percebendo o que estava por vir. Bruce retirou a capa com um movimento elegante e, ali, sob a luz suave, surgiu a HP4 Race, mais linda que eu já tinha visto. Preta fosca, aerodinâmica, com detalhes quase felinos no design... como se tivesse sido feita especialmente para mim.
— Você comentou dela uma vez, quando estava bêbada. — disse ele, me entregando a chave. — E eu estive esperando o momento certo.
Fiquei olhando a moto sem conseguir falar. Uma parte de mim queria gritar de empolgação, subir ali mesmo e sair cortando Gotham inteira em alta velocidade. Mas a outra... hesitava.
— Bruce... — comecei, olhando a chave com um certo receio. — Isso é demais... Mas não sei se devo aceitar... Não acha que é meio cedo para presentes caros?
Ele riu.
— Não conheço o conceito de dar presentes baratos, Selinne.
Eu quis rir, mas me contive. Ainda olhando para aquela belezura, meus dedos passaram pelo couro do estofado. Mas afastei a mão.
— Mas é sério, eu não posso aceitar...
Ele não desviou o olhar de mim, em vez disso se aproximou, e com um sorriso de canto que só ele sabia fazer, me puxou pela cintura e me beijou intensamente.
— Aceita. Já é sua, e não há espaço para objeções. Se fizer isso... é perda de tempo, porque eu não vou aceitar de volta. — sussurrou, encostando a testa na minha.
Sorri, sentindo o calor subir no rosto. Fiz carinho no guidão, como se tocasse um animal raro.
— Ela é linda.
— Como a dona. — murmurou, e eu revirei os olhos com um riso baixo.
Mas então ele olhou o relógio, e o peso do mundo pareceu voltar aos ombros largos.
— Preciso fazer umas... coisas. — disse, meio culpado. — Mas te vejo à noite. Aqui mesmo. Traz a Isis. Alfred vai adorar ver ela, como um... pedido de desculpas por termos feito barulho ontem.
Eu ri assentindo. Roubei mais um beijo rápido antes de sair da mansão naquela moto, com a promessa de voltar quando o céu estivesse escuro outra vez.
(...)
Depois de uma trajetória divertida da mansão de Bruce até meu apartamento, e com certeza ganhando algumas mutas de excesso de velocidade... notei algo estranho na minha porta.
Estava encostada.
Meu coração acelerou num segundo. A chave escorregou dos meus dedos, mas a peguei no ar antes que caísse no chão. Empurrei a porta devagar, procurando por qualquer ruído. Mas não ouvi nada, absolutamente nada.
— ... I-Isis? — chamei, a voz saindo falha.
Nenhuma resposta.
Entrei completamente, mas o apartamento estava em silêncio absoluto. Olhei para o sofá, para a estante... tudo aparentemente no lugar. Menos ela.
— Isis?! — chamei mais alto, entrando no quarto, depois no banheiro, no armário. Nada.
E então vi.
No chão da cozinha, perto do pote de ração... uma folha de papel vermelha, mas dobrada.
Me aproximei e, com os dedos tremendo, abri a carta.
"Se quiser ver sua gatinha de novo, vá sozinha à Zona Portuária.
Encontre o barco na Doca 3A — Berço 5.
Esta noite.
Sem truques, sem polícia, sem Batman.
Ou nunca mais a verá."
— Miau.
O ar escapou dos meus pulmões, fazendo meu coração acelerar mais. Aquela carta tinha a mesma letra que a minha, a mesma assinatura que eu usava em meus roubos. O papel tremia entre minhas mãos. Um ruído baixo escapou da minha garganta. Rasguei a carta ao meio, depois em pedaços ainda menores, jogando-os no chão da cozinha, o coração disparado com força.
— Desgraçados!... — murmurei, sem conter o choro que ameaçava cair. — Se encostarem um dedo nela... Maldita seita...
Ajoelhei perto do pote de ração e fechei os olhos por um instante, tentando conter a raiva que borbulhava dentro de mim. Eles não iam sair impunes. Não dessa vez.
Ninguém mexe com a minha gata.
Ninguém.
Isis deve estar tão assustada... Eles sabem que ela é importante demais para mim, e que eu faria qualquer coisa por ela. Não posso permitir que essa maldita sociedade fanática continue existindo, atrapalhando a minha vida...!
A tarde chegou rápido demais.
Passei a manhã inteira sentada no sofá, encarando o celular como se ele fosse responder por mim.
Avisar o Bruce? Envolver a polícia e deixar que eles cuidem disso junto ao Batman?
Mas... e se eles machucarem a Isis? E se esse erro matá-la? Como eu viveria depois disso?
Eu odiava ses.
Com certeza isso era uma armadilha, mas porque agora? Estão tão desesperados por mim assim? Eu não consigo entender qual é a deles.
Joguei o celular longe e respirei fundo. Peguei meu traje e o chicote, dobrei com cuidado, coloquei tudo na bolsa, eu iria precisar vestir isso longe do meu apartamento, não podia arriscar que as câmeras, ou os tiras me vissem saindo daqui vestida, não depois deles diminuírem a pressão em cima de mim. A espera estava me matando por dentro.
Então bateram na minha porta.
Olhei com uma pressão quente crescendo no peito. Eu não esperava que eles mudassem de ideia tão rápido e já viessem atrás de mim.
Com passos lentos em direção à porta, abri devagar, e meu estômago despencou.
— C-comissário Gordon!? — perguntei, mas meu olhar foi direto para o outro rosto conhecido. — Bullock?
Eles não disseram nada de imediato. Mas me encaravam com seriedade.
— Selinne Kyle — começou Gordon, tirando um par de algemas do casaco. — Está presa.
Dei um passo para trás depois de ouvir aquela voz firme.
— O quê!? — minha voz saiu trêmula. — Que história é essa? Sob qual acusação agora?
— Um roubo esta madrugada — disse Harvey, avançando um passo. — A perícia esteve no local a manhã toda. E o DNA encontrado... é seu.
Fiquei gelada na hora.
— Isso é loucura! Eu não fiz nada! Eu estava na mansão Wayne, com...
Engoli as palavras. Idiota.
Harvey se aproximou com as algemas, e eu levantei a mão para impedi-lo.
— Peraí! Eu sou inocente! Isso é um erro, vocês sabem que é! Tem alguém se passando por mim, vocês sabem disso!
— Você já enganou a polícia demais, Kyle — rosnou Gordon, endurecendo a voz. — Mas agora temos provas. De verdade.
Harvey me olhou, vi frustração e decepção em seus olhos, e eu não esperava ver esse olhar nele.
— Eu não vou ser presa! — gritei, empurrando Harvey quando ele tentou me agarrar. — Eu não posso! Não hoje...!
A sala virou um caos. Lutei com eles, chutando a perna de Gordon e desviando das mãos de Harvey. A bolsa com meu traje ainda estava sobre o sofá. Em um salto, a peguei e desviei deles outra vez.
— Eu tenho algo importante pra fazer hoje à noite! — Empurrei Harvey e bati a bolsa no rosto de Gordon.
— Resistência à prisão só confirma sua culpa! — gritou Harvey, tentando me alcançar de novo.
Mas eu já estava correndo.
— Se é mesmo inocente, volte aqui! — ouvi Gordon gritar.
Disparei escada abaixo como um raio, escorrendo o corrimão com agilidade, ouvindo os dois gritarem meu nome e chamarem reforço pelo rádio. O prédio virou um pandemônio. A vizinhança assistia tudo, claro. Gotham adorava um espetáculo.
Atravesso o estacionamento feito um borrão. Minha moto ainda estava lá, graças aos céus. Montei nela antes que qualquer um pudesse chegar perto.
— Vamos, querida. Me tira daqui!... — apertei o capacete e coloquei a mochila nas costas.
Acelerei.
O som do motor engoliu os gritos e as sirenes que já começavam a ecoar fora do estacionamento. Cruzei ruas, becos e avenidas, com a cidade inteira me olhando como se eu tivesse voltado à ativa. As viaturas surgiram logo atrás, luzes vermelhas e azuis refletindo nas janelas dos prédios.
Olhei o relógio no painel da moto.
Faltavam poucas horas para escurecer.
A noite estava chegando.
E Isis estava em perigo.
Não podia ser pega. Não agora, ela era a minha prioridade.
Acelerei mais. Atravessei semáforos vermelhos, buzinei, e quase fui atropelada por um ônibus. A cidade parecia gritar contra mim, mas eu continuei firme, cortando o vento como uma flecha. Já as multas, iriam se acumular no fim do dia.
Não posso parar. Não posso vacilar com esses malucos.
Perto do porto, vi mais viaturas ao longe. Estavam começando a me cercar. Eles não me deixariam fugir de moto, não mesmo. Desviei por uma ruela e entrei num beco estreito. Os pneus cantaram, a moto derrapou, mas mantive o controle. Desliguei o motor e empurrei a moto até os fundos, onde sacos de lixo escuro se empilhavam atrás de uma lixeira de ferro.
— Droga, eu não queria te deixar nesse lugar imundo... Mas não tenho escolha. — senti meu peito apertar, aquilo era bom demais para durar por muito tempo.
Cobri a moto como pude, usando os sacos e papelão. Mal terminei, ouvi as sirenes passando na rua principal, logo à frente.
Respirei fundo.
A noite já tocava o céu, expondo as poucas estrelas ainda visíveis naquela cidade. A sombra dos prédios se alongava acima. E o tempo corria contra mim.
Tirei o traje da bolsa e me vesti ali mesmo, entre os odores do lixo e o concreto úmido. Vesti as luvas, ajeitei a máscara. Prendi o chicote na cintura e ajeitei a minha tiara.
Quando subi o zíper do vestido, senti outra parte de mim despertar.
A que não tem medo de nada.
A que luta sozinha na calada da noite.
A que não vai descansar até trazer Isis de volta para casa.
— Vocês escolheram a gata errada pra sequestrar — resmunguei, guardando a bolsa abaixo da moto.
Olhei para os prédios acima de mim e comecei a escalar, Subindo paredes, canos, escadas até chegar ao topo. Os telhados, onde eu poderia ser o que sou de verdade.



Comentários
Postar um comentário