3 - O Álibi
A sala do interrogatório tinha um cheiro mofado, a luz pendurada no teto piscava de tempos em tempos. Selinne mantinha os ombros erguidos, mas a expressão cansada entregava a exaustão acumulada nos últimos dias.
— Vamos tentar de novo, Selina — disse o detetive, enfatizando o nome com gosto. — Você jura que não tem nada a ver com o roubo do museu?
— Eu já disse que não, o senhor tem problema de audição? — respondeu, com a voz firme.
— Não pense que pode me enganar mocinha. Eu conheço o seu tipinho, pagam de boa gente depois de sair da prisão. — ele apontava aqueles dedos enrrugados para Selinne. — Mas depois não aguentam o tranco e voltam para o crime.
— Eu estava no meu turno em um mercadinho, — revirou os olhos. — repondo prateleiras e limpando o chão onde clientes entram de sapato sujo, ignorando o tapete, como se fosse enfeite. Veja as gravações, fale com a minha chefe.
— Câmeras podem ser adulteradas, e não seria a primeira vez que você faz isso. Pessoas mentem. Você, por exemplo, já mentiu muito, não é, Selina?
Ela cerrou os punhos sobre a mesa de metal.
— Meu nome é Selinne agora.
— Claro que é — o detetive sorriu, sem esconder o sarcasmo. — Mas nomes não apagam histórias, querida. Principalmente a sua.
Antes que ela perdesse o controle, a porta se abriu com um rangido abafado. O Comissário Gordon entrou, segurando uma pasta de documentos.
— Isso é tudo. — disse ele, direto ao ponto. — Ela estava mesmo no mercado, temos a gravação. Batman entregou pessoalmente depois de analisar. Libere a moça.
O detetive Harvey Bullock pareceu contrariado, mas acatou com um grunhido. Gordon se aproximou de Selinne, com um olhar de cautela e empatia perceptíveis.
— Parece que você está limpa, por enquanto. Mas vamos ficar de olho. Seja lá quem roubou aquele museu, talvez esteja mais perto do que parece... vamos investigar.
Selinne não respondeu. Apenas assinou os papéis que ele trouxe, e saiu da sala sem olhar para trás.
Lá fora, a chuva fina desenhava trilhas nos vidros da delegacia. Bruce a esperava encostado em um dos pilares de concreto, mãos nos bolsos e olhar atento a tudo. Ao vê-la, caminhou até ela e, sem dizer uma palavra, tirou o sobretudo e pousou sobre os ombros dela.
— Bruce... não me surpreende que você seja o único rosto que eu veja aqui... já foram tantas vezes... mas dessa vez... você acredita em mim? — ela perguntou, com a voz baixa.
— Acredito, sempre acreditei que pudesse mudar de vida, Selinne... — ele respondeu, com um sorriso breve, sereno. — Está se saindo bem agora... Continue assim.
Selinne desviou os olhos, mordendo o lábio inferior. O velho olhar, aquele que Bruce conhecia bem, apareceu — uma mistura de raiva contida e dor profunda.
— Não é justo — murmurou. — Eu tô tentando... Tô tentando de verdade... Mas tudo parece estar caminhando para outra direção...
— .... Selinne...
Ela devolveu o sobretudo, segurando-o por um instante a mais, como se hesitasse. Depois, o entregou de volta a ele.
— Eu vou descobrir quem fez isso. Quem tentou me ferrar. Eu vou, e essa pessoa vai pagar muito caro.
— Selinne, não...! Deixe isso pra polícia... Você tem uma nova chance... Todos estão vendo você. Não jogue isso fora... Por favor. — ele implorou com um tom mais sério que o normal, olhando fundo em seus olhos.
— ... Quem fez isso precisa aprender que não se cutuca quem está tentando ficar quieto. — respondeu, já se afastando dele.
— É isso que eles querem, que você desista dessa tranquilidade. Deixe a polícia e... O Batman cuidarem disso. Por favor, Selinne...
Ela abaixou a cabeça, fechando os olhos com força. Era difícil lutar contra seus instintos, mesmo que seu amigo Bruce estivesse pedindo.
— Não Bruce... Acabou.
— Não faça isso... Ainda não acabou.
Bruce ficou parado, segurando o sobretudo molhado, a água da chuva escorria por seu rosto aflito, Selinne nunca viu aquele olhar antes... Mas ela se afastou, dobrando a esquina, e ele deu um passo à frente.
— Selinne! Estou implorando!
Ela parou e o olhou por cima do ombro.
— Obrigada pela gentileza, Bruce. E pela confiança que sempre teve em mim... Mas algumas pessoas não mudam o destino. Mesmo tentando até o fim.
Então ela desapareceu na escuridão da rua.
Bruce fechou os olhos por um momento, apertou o sobretudo contra o peito e sentiu o cheiro dela ainda ali. Quente, recente, distante.
— Ainda não é o fim, Selinne... Não vou permitir que você se perca outra vez.
(...)
No dia seguinte, Selinne não apareceu para o trabalho. Bruce passou pelo mercadinho e viu a plaquinha amarela de "procura-se atendente" balançando preguiçosamente com o vento da manhã. Ele a encarou por alguns segundos antes de voltar ao carro. Seus ombros pareciam mais pesados que o normal quando entrou na empresa, e o olhar, embora contido, trazia um abatimento visível a seus funcionários.
Quando a noite caiu, Gotham estava mergulhada em névoa e silêncio. E foi nessa noite que Selinne fez o que jamais pensou que faria outra vez.
Ela tirou do fundo do armário o vestido de látex negro que há muito tempo não usava. Sentiu o cheiro do passado ao vesti-lo, aquele perfume sutil de adrenalina e perigo. As botas de salto alto encaixaram-se perfeitamente até sua coxa, como se esperassem por ela há muito tempo. Prendeu o chicote na cintura, com uma parte pendendo para trás — lembrando uma cauda negra.
Subiu no parapeito da janela, acariciou Isis que estava deitada sobre uma mesinha na lateral da janela. Isis miou suavemente.
— Cuide da casa pra mim, garota — disse, com um sorriso amargo. — Hoje vou tentar o primeiro passo para limpar meu novo nome.
Pulou.
Seu corpo deslizou pelas escadas de incêndio com uma agilidade felina que apenas ela sabia como fazer, desceu lance por lance até alcançar a calçada, onde as luzes de Gotham tremeluziam.
Momentos depois, ela estava diante do museu. As ruas ao redor estavam vazias, o relógio da torre marcava 3h27 da manhã. A escuridão era novamente sua aliada. Selinne se aproximou silenciosamente, ativou as luvas com garras embutidas e começou a escalar pelas paredes do prédio. Subiu com uma precisão que os anos tranquilos nunca a permitiram esquecer.
Ao alcançar o topo, caminhou cuidadosamente sobre o telhado até o alçapão de vidro. Observou lá dentro a cena do crime que ainda estava isolada, e próximo a ela estavam os sensores, lasers, alarmes. Nada que ela não conhecesse como a palma de sua pata.
Então levantou uma das mãos, prestes a abrir o alçapão com suas garras... foi quando sentiu a presença.
Uma rajada de vento cortou o ar e a capa negra pousou com um impacto suave.
Selinne ergueu os olhos.
Batman.
— Pensei ter dito para não voltar a essa vida novamente, Selinne.
Ela se ergueu com lentidão, sensualidade, pronta para disparar seu sarcasmo e revolta.
— Você não disse nessas palavras... Disse que saberia se eu voltasse. Um pouco... Obsessivo não acha? Se parar para pensar... — ela soltou o chicote do quadril.
— Não estou aqui para lutar com você, e nem para te prender... Apenas... Quero te fazer repensar. — Batman levantou a mão, como se quisesse tranquilizá-la.



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