29 - Lembranças que prefiro ignorar

 
Isso aconteceu há quatro anos atrás.

E é engraçado como certas memórias parecem cicatriz mal curada. Não importa o quanto você tente esquecer, ou ignorar — uma hora elas coçam, e te lembram do passado a força.

O nome dele era Pette... E, por um tempo, eu achei que ele era tudo que eu precisava.

Era esperto, sorridente, com aquele ar de quem sabia todos os atalhos da cidade, mas nenhuma intenção de andar pelo caminho certo. A gente se conheceu num bar de esquina, e ele me ganhou com três frases e um olhar cheio de promessas perigosas. Em menos de um mês, já estávamos morando juntos num apartamento pequeno, apertado, e nada cheiroso.

Roubar com ele era como dançar — eu fazia meu papel, ele fazia o dele. Pette era bom em se infiltrar. Arranjava empregos temporários, ganhava confiança, e quando ninguém esperava, me passava informações valiosas: senhas, horários, mapas. Eu gostava da emoção. Da cumplicidade. Da ideia de que alguém finalmente me entendia. De alguém como eu...

Mas, como quase tudo na minha vida, essa história não terminou bem.

Primeiro vieram os sinais sutis. Ele começou a sair sozinho, sumia e não me avisava. Depois, parou de dividir as contas. Começou a achar que tudo era "mais justo" se ele ficasse com uma parte maior — afinal, ele, é que arriscava se infiltrando. E eu, idiota e imatura, deixei passar. Achei que era fase, que ia mudar depois de um tempo, que só precisávamos de mais um pouco de confiança um no outro. Que o brilho que eu vi nele ainda estava lá... em algum lugar.

Até que eu resolvi seguir ele numa dessas noites. A adrenalina foi outra. Ruim e Tóxica. Como o enjoo de quando você sabe que tá prestes a descobrir algo que vai te partir no meio. Mas que é necessário, mesmo que esse choque de realidade te destrua.

Então vi com meus próprios olhos, dois cenários diferentes. Ele com outra mulher. E depois, entregando dinheiro a um homem que eu conhecia de nome — um dos braços de Maroni. Pette estava me usando, aquilo estava claro. Eu era só uma peça em um plano maior. Eles ficavam com a grana, me deixavam na linha de frente, e no fim das contas, a "dupla" era só fachada.

Quando ele voltou para casa naquela noite, eu esperei.

Mantive a calma, mesmo estando furiosa por dentro.

— Posso saber onde você foi? — vi ele indo em direção à geladeira, pronto para pegar uma bebida.

— Não enche, Selina. — ele disse, sem nem me olhar.

— Eu vi você. — falei. — Vi tudo. Você com ela, aquela moça de vestido branco, cabelos castanhos e perfume doce, barato... e com aqueles homens. Está trabalhando para o Maroni a quanto tempo?

A mudança foi instantânea. Ele virou, os olhos estreitos, a mandíbula tensa. Ele era um pouco maior que eu, tinha presença. Esse foi um dos motivos pelo qual me senti atraída, tão patética.

— Você me seguiu?!

— Você me enganou!

Foi aí que tudo desabou pela primeira vez entre nós.

Sem que eu pudesse ter tempo de reagir, ele me empurrou contra a mesa da cozinha. A madeira cravou nas minhas costas. E antes que eu pudesse reagir, veio o tapa. Seco. Cru. Ardente na bochecha. Tão fora de tudo que eu imaginava, que meu corpo congelou. Eu só consegui encarar ele, sem entender o que havia acontecido.

Pette... aquele que sorria, que fazia planos comigo, que dizia que eu era especial... me bateu.

E eu não fiz nada...

Porque, naquele momento, eu quis acreditar que era um acidente. Um deslize. Algo que não se repetiria. Que foi apenas um ato irracional do calor do momento.

Mas aquilo não parou por ali.

Repetiu tantas vezes que meu corpo aprendeu a se encolher por instinto. Eu deveria ter dado um fim naquilo desde o primeiro tapa, mas não consegui... Não por fraqueza, ou pena dele. Mas eu o amava, foi o primeiro homem que me conectei de alguma forma, ele era como eu. Estávamos perdidos, tentando encontrar nosso caminho. Eu estava disposta a perdoar os vacilos dele, dar segundas chances, esperando que o mesmo fosse feito comigo.

Mas a violência continuou, e por qualquer coisa que eu fizesse, seja usar um vestido que ele não aprovava, um batom mais escuro, uma piada feita no momento errado, — o que antes ele dizia adorar. — Ou por deixar a comida esfriar. Por recusar um roubo — especialmente os que envolviam propriedades da WayneCorp. Pette dizia que eu estava amolecendo, que minha amizade com Bruce deveria ser apenas por interesse. Passei a ver Bruce menos vezes... a desmarcar compromissos, me senti... isolada.

Na última briga, tentei impedi-lo de sair. Ele estava falando em "acertar um serviço" que claramente não era nosso. Eu estava cansada e machucada. A discussão ficou feia. Ele me empurrou de novo, me prendeu contra a parede. E quando tentei me soltar, veio outro soco.

Eu poderia ter desviado, ou nocauteado ele na hora, mas... não me movi. Apenas não me movi.

O olho inchou na hora. Fiquei zonza. Caí sentada no chão. Ele me xingou, cuspiu no chão, e saiu batendo a porta.

Ficou dois dias fora de casa.

Dois dias em que eu não comi. Não saí. Apenas existi entre o sofá e o chão da cozinha. Isis ainda não fazia parte da minha vida. Eu não tinha ninguém. E talvez, se ninguém tivesse aparecido... eu teria continuado ali, apodrecendo de dentro para fora. Minha vida havia perdido o sentido, e nem mesmo roubar me deixava animada.

Então Bruce apareceu.

Preocupado com o meu sumiço.

Lembro do toque na campainha. E eu, com medo de que fosse Pette de novo, fiquei em silêncio. Mas depois veio a voz dele.

— Selina? Sei que está em casa... — Bruce disse próximo à porta. — Você está bem?

Eu sabia que ele não iria embora enquanto não me ouvisse. Então levantei do sofá, me aproximei da porta. Não queria abrir, apenas dizer que estava bem, esperando que isso fosse o suficiente para ele ir embora.

— Bruce, oi! — fingi a minha voz animada de sempre. — Estou ótima, só um pouco... ocupada. Se importa de nos vermos outra hora?

Houve um breve silêncio. Fiquei confusa e olhei pelo olho mágico, e o rosto de Bruce... me deixou surpresa. Seu olhar estava diferente, mais melancólico talvez, sério. Eu nunca tinha visto ele daquele jeito. — só alguns anos depois, quando ele fosse me visitar na penitenciaria.

— Abra, por favor.

Minha mão tremeu em direção à maçaneta.

— Sabe que eu não vou embora, enquanto não te ver. — ele continuou.

Abri a porta sem pensar muito. Ele levantou o rosto na hora, e vi seu semblante triste mudar. Choque, misturado a mais alguma coisa que não pude reconhecer.

— Eu disse, que não é um bom momento... — falei sem graça.

— Quem fez isso? — sua voz saiu ríspida, me interrompendo.

Eu não consegui responder. Apenas caí nos braços dele e chorei. Nunca tinha mostrado esse meu lado frágil, e nunca estive tão frágil como naquele dia.

Bruce não perguntou mais nada. Só ficou ali. Me abraçando, senti seus braços tensos a minha volta. E agora com a minha recente descoberta... entendo porque Pette e todo o pessoal do Maroni desapareceram do dia para a noite.

(...)

Eu não sabia quantos dias já tinham se passado desde o último evento. O teto do meu apartamento era tudo o que eu conseguia olhar. Era pálido. Trincado num canto. E parecia tão vazio quanto eu.

O síndico já tinha gritado três vezes naquela manhã, batia na minha porta sem parar.

— Você vai ser despejada, ouviu?

Mas eu nem reagi.

Fiquei imóvel, encolhida debaixo das minhas cobertas. Era melhor assim.

Se eu não existisse, talvez doesse menos. De repente, o barulho lá fora mudou. O tom dele raivoso se apagou, substituído por sussurros. Alguém conversava baixinho com ele, não consegui entender todas as palavras.

Apenas uma palavra do síndico chamou a minha atenção:

— Obrigado. — algo assim.

Meu peito afundou ainda mais ao perceber.

Era ele de novo.

Bruce.

— Selina... me deixe entrar.

A voz dele do outro lado da porta era grave, mas paciente, como sempre...

— Estou preocupado com você. Já faz duas semanas...

Duas semanas? Mais tempo do que eu tinha pensado...

Mas tanto fazia.

Não respondi.

Não consegui nem mexer a boca.

Só fiquei ali, presa no meu próprio corpo, torcendo para que ele desistisse e fosse embora. Mas Bruce não desistia, na verdade, penso que ele nem conhece essa palavra em seu vocabulário...

Então quando estava quieto demais, ouvi a maçaneta girar, um clique tímido e depois o ranger. Aí os passos hesitantes atravessando a bagunça da sala, seus passos pareciam leves demais, talvez analisasse a bagunça que deixei, as decorações quebradas, ou a televisão em pedaços durante um de meus surtos de raiva.

— Selina? — Ele chamou meu nome de novo, baixo, andando até me encontrar.

Parou na porta do quarto.

Senti seu olhar em cima de mim, tentando me decifrar naquela bagunça de cobertores. Eu me encolhi ainda mais debaixo das cobertas, na tentativa de dificultar que ele me encontrasse, mas ele se aproximou...

— O que você está fazendo, Selina?

A pergunta parecia tão simples, mas tão pesada.

Demorei a responder.

Minha voz saiu rouca, pequena.

— Ele foi embora...

Fechei os olhos.

— Nem se despediu... — continuei mais fraca ainda. — só sumiu. Eu não sei... o que fazer sem ele.

O silêncio ficou pesado por um instante, mais pesado do que deveria.

Depois, ouvi o som da janela sendo aberta.

Uma rajada de ar frio varreu o quarto, junto com a poeira dos móveis.

— Você não pode fazer isso com você mesma — disse Bruce, e sua voz era tão firme que chegou a me irritar. — Eu não vou deixar.

Senti seus braços fortes me puxarem para fora da cama.

Meus joelhos falharam, mas ele me segurou.

— Vamos. Você precisa de um banho, a quanto tempo não vê água?

— Não quero saber de água — murmurei, mas era inútil.

Bruce já me carregava até o banheiro como se eu fosse feita de papel. Ele ligou o chuveiro e me colocou debaixo da água com roupa e tudo.

— Ei! — tentei protestar, mas era inútil. Quando ele tinha algo em mente, era impossível convencê-lo do contrário. O choque da água gelada me fez estremecer.

Só então percebi o terno dele encharcado também. E eu sabia o quão caro era um terno daqueles.

— Bruce, o seu terno... — murmurei, confusa.

— Eu não me importo. — ele sorriu de leve, como se não fosse nada.

A água escorria pelo meu rosto, pela minha roupa amassada.

Por um momento, pensei que talvez pudesse lavar o vazio de dentro também. Bruce segurou meu rosto com cuidado, afastando os fios molhados. Depois, pegou o frasco de xampu e começou a lavar meu cabelo, como se eu fosse uma criança perdida. Talvez eu fosse, talvez minha criança interior estivesse perdida em algum lugar em mim.

Fechei os olhos.

Pela primeira vez em semanas, senti algo além da dor. Quando ele terminou, e me troquei sozinha, ele me ajudou a sentar na beira da cama.

— Fica aqui. Vou fazer alguma coisa para você comer.

Ouvi os passos dele na cozinha. O barulho da geladeira sendo aberta, e batida...

Nada.

Vazia.

Minutos depois, ouvi a porta se fechando e passos apressados no corredor. Me enrolei na coberta e fiquei ali, tremendo, não de frio, mas por alguma coisa semelhante à ansiedade, então apenas fiquei esperando.

Não demorou muito.

Bruce voltou, ofegante, carregando sacolas de supermercado, muitas delas. Seus sapatos estavam molhados, e deixavam pegadas pelo chão. Ele sorriu para mim, daquele jeito meio cansado, mas decidido.

— Não sou um grande cozinheiro, mas o que eu fizer, será comestível.

Não consegui sorrir... não por ser rude, era apenas cansaço emocional. Fui para a sala sozinha e fiquei deitada no sofá, abraçada à coberta como se fosse uma âncora, enquanto Bruce fazia barulho na cozinha.

Eu o observava por entre as pálpebras semicerradas. Ele parecia deslocado ali, entre panelas amassadas e uma cafeteira quebrada. Claramente não era alguém acostumado a cozinhar...

Mas ainda assim, tentava.

O cheiro de algo quente e simples se espalhou pelo apartamento e pela primeira vez em semanas, meu estômago roncou. Bruce colocou dois pratos sobre a mesa da cozinha e me chamou com um gesto de cabeça.

Obedeci sem dizer nada. Sentei à sua frente, olhando para a comida meio desconfiada — mas estava boa na aparência. Dei a primeira garfada em silêncio.

Ele respeitou meu silêncio. Comia devagar, como se esperasse eu tomar a iniciativa de falar, apesar disso não tirava os olhos calmos de mim.

Mas eu não queria falar.

Então ele respirou fundo e disse primeiro:

— Você não pode continuar assim, Selina. — Sua voz era baixa, como se não quisesse quebrar o pouco de paz que existia entre nós. Sempre educado. — Você é jovem. Vai encontrar alguém melhor que esse Pette, entendo que pode parecer o fim do mundo... mas não é.

Eu balancei a cabeça devagar, enfiando o garfo no prato, sem apetite de novo. A menção ao nome dele, deixava o meu estômago revirado.

— Não quero saber de mais ninguém — murmurei, a voz quase sumindo.

Bruce apoiou os cotovelos na mesa, juntando as mãos.

— Então... — ele disse — foca em você mesma. — Seu olhar encontrou o meu, firme como sempre. — Mas não se deixe afundar assim. Não se entrega, Selina. Ou vai acabar... — ele hesitou — vai acabar morta.

As palavras dele vieram até mim como um fato frio e inevitável.

Engoli em seco.

Ele continuou, olhando nos meus olhos de um jeito que não dava espaço para fuga:

— Você é mais forte do que isso. Muito mais, e nós dois sabemos disso. Não deixe que ninguém, nunca mais, tire de você quem você é.

Fiquei ali, escutando suas palavras, ele sempre foi sábio, e sempre parecia preparado para tudo.

Eu não chorei. Não agradeci. Só gravei tudo que ele me disse.

Cada vírgula, cada silêncio entre uma frase e outra... Depois daquele dia, as coisas melhoraram, um pouco pelo menos. Não do jeito que Bruce gostaria, claro que não. Não do jeito que a maioria das pessoas consideraria "melhor" ou "correto".

Mas foi o melhor para mim.

Voltei a roubar.

Era a única coisa que ainda me fazia sentir algo. A única coisa que acelerava meu coração, que me lembrava que eu ainda estava viva, que dava um sentido. Eu nunca fui somente uma ladra, eu tinha um diferencial, e não era por conta do látex, ou da tiara de gatinho. Eu era mais, eu era a anti-heroína de Gotham. Era um mal necessário, o que eu roubava, não ficava apenas para mim, ia para causas, ajudava pessoas, e principalmente os animais.

Uma semana depois, quando voltava de um trabalho que peguei por diversão... encontrei Isis perdida na rua, e minha vida passou a ganhar mais um sentido.

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