28 - Quando se enterra uma amizade

 
Na volta para casa, peguei um táxi. Isis estava aninhada nos meus braços, o corpo quente e macio dela era a única coisa que ainda me ancorava à realidade, a caixa de transporte ficou para trás, esqueci de pegar na pressa. Ela me olhava com aqueles olhos dourados, parecia entender que eu não estava bem, apesar disso... ronronava.

As ruas passavam borradas pelas janelas, mas minha visão estava turva demais para distinguir qualquer coisa. As lágrimas salgadas ainda escorriam pelo meu rosto. Já fazia muito tempo que eu não chorava assim.

Ele era o Batman.

Meu amigo, Bruce Wayne.

Doía até pensar.

A forma como descobri foi mais que uma intuição, foi sentimental. Algo dentro de mim se remexeu, algo que eu nunca poderia esquecer. Porque era aquele sentimento, que eu tinha com Batman. Cada beijo, e até o gosto dele, eu nunca esqueci, e nunca poderia esquecer. Era ele. E ao beijar, foi confirmado.

Mas ainda doía, muito mesmo. Não era só sobre ele ter mentido — era tudo. Cada conversa, cada gesto, cada lembrança... era uma máscara. Eu confiei em uma máscara! Me apeguei a ela...

A amizade, o companheirismo, a forma como ele dizia se importar comigo... era tudo falso? Ou ele também se enganava enquanto me enganava? Essa dúvida parecia difícil demais de suportar...

Meu peito apertava, latejava, como se tivesse alguma coisa quebrando por dentro. Se fosse só raiva, eu gritaria, mandaria ele para o inferno, desejaria nunca tê-lo conhecido. Mas não era só isso. Era muito mais. Era a sensação sufocante de ter perdido um amigo.

O meu melhor amigo...

Eu sabia que poderia voltar atrás se estivesse errada, ele mesmo disse que poderíamos fingir que aquilo nunca aconteceu. Que foi só o calor do momento... Mas o problema não era esse. Apesar de tudo, me sinto ainda mais traída quando lembro que ele me prendeu. Fiquei lá por dois anos... sei que por um lado a culpa foi minha, que eu não deveria ter roubado e tudo mais... Mas ele me conhecia! Droga... ele sabia porque eu fazia essas coisas, e o quanto era difícil parar e mesmo assim... mesmo assim ele...

Como é que eu deixei isso passar? Como fui tão burra? Por que eu não percebi antes? Estava debaixo do meu nariz, e eu nem me toquei. Será que um lado meu não queria enxergar as semelhanças? Ou ele foi tão bom ator, que me enganou completamente?

Meus dedos afundaram no pelo de Isis, e ela miou baixinho, como se quisesse me acalmar. O taxista lançou um olhar pelo retrovisor.

— Você tá bem, moça?

Assenti rapidamente, enxugando o rosto com a manga da blusa.

— Tô, sim. Obrigada. — murmurei.

Mentira. A última coisa que eu queria era conversar. A última coisa que eu suportaria agora seria alguém me tratando como uma coitada. Eu não queria palavras de conforto, nem pena!

Quando o táxi finalmente encostou, paguei sem dizer nada e desci abraçando Isis com mais força do que devia. Minhas pernas estavam bambas, como se eu tivesse passado dias sem dormir. Assim que tranquei a porta do apartamento, desabei sem controle.

Soltei Isis no chão e caí de costas contra a madeira, escorregando até sentar. A chave ainda presa entre meus dedos. As lágrimas vieram de novo, sem controle, sem aviso. E dessa vez, eu não tentei contê-las.

Chorei como se estivesse enterrando alguém.

E talvez eu estivesse mesmo.

Detesto me sentir assim. Tão fraca, tão patética, e tão... humana.

Detesto me olhar no espelho e ver esse rosto inchado, esses olhos vermelhos. Detesto a raiva que sinto de mim mesma por sentir pena de mim. Mas, pela primeira vez em dias, eu não tinha forças para engolir tudo de novo. Eu já estava engolindo há tempo demais. A dor de tudo que deu errado, tudo que planejei, tudo que perdi. Hoje não pude sufocar esses sentimentos, e nem esconder esse meu lado vulnerável em uma caixa no fundo do peito.

Cambaleei até o quarto. Me joguei na cama como se ela fosse me salvar de mim mesma.

E chorei sem precedentes.

Chorei por enterrar uma amizade.

Chorei até meu corpo inteiro doer.

Apenas chorei...

E quando o sono finalmente veio — não foi um alívio. Foi um apagão. Como se, por algumas horas, o universo me fizesse o favor de me desligar.

(...)

O domingo arrastava as horas como se o tempo também estivesse bêbado comigo. Encontrei a garrafa por acaso. Esquecida no fundo do armário da cozinha, comprei em algum momento, mas não me lembro quando. Não gosto da ideia de encher a cara, mas no momento é o único remédio para um coração partido.

E também, minha segunda companhia além de Isis.

Deitei no sofá com a garrafa apoiada contra o peito, como se fosse um segundo coração — um que ardia pra caramba em vez de bater.

O jornal passava na TV com o volume baixo. As imagens piscavam sem sentido enquanto meus olhos tentavam focar, e falhavam. Eu via pedaços. O rastro de destruição. As sirenes. A voz monótona do âncora descrevendo mais uma das noites do herói da cidade.

— [...] Killer Croc enfrentou o Batman ontem à noite em uma batalha brutal. O crocodilo foi derrotado e teve a mandíbula descolada durante o combate...

Fechei os olhos.

— [...] médicos afirmam que ele passará por uma cirurgia de reconstrução, mas nunca mais poderá mover a boca como antes...

Como se isso importasse. Como se alguma coisa importasse nessa vida...

— Que se dane esse jacaré. — resmunguei, enchendo a boca com a bebida.

— [...] após a cirurgia, será mantido em uma ilha isolada na Tailândia, sob vigilância constante, e fortemente medicado...

Apenas mais um dos monstros contidos por ele. Depois da terceira tentativa, o quarto modo de cuidar deles é sempre o mais letal... Enquanto ele salvava Gotham mais uma vez, — essa merda de cidade. — fiquei aqui, chorando e enchendo a cara.

Eu só existia, ali, afundada no sofá com o gosto de álcool na boca, os olhos ardendo de tanto chorar nas últimas horas. Essa situação é meio familiar, na primeira vez que fiquei assim, sequer levantei da cama. Não tinha ânimo nem para jogar o lixo para fora. Meu primeiro caso de depressão, mas não havia bebida para me forçar a levantar e usar o banheiro, não... o sentimento destrutivo me deixou ainda mais apática. Nem a bebida me tirou daquilo.

Apenas... uma pessoa. A qual se deu o trabalho de vir cuidar de mim.

Bruce.

Isis miou alto, interrompendo meu devaneio alcoólico. Ela estava sentada ao lado do sofá, os olhos atentos e julgadores. Da última vez que estive assim, não tinha uma gata para alimentar.

— Já vou... — murmurei, a voz mais rouca do que eu esperava.

Mas não me mexi.

O miado veio de novo, insistente. Ela estava com fome. Era isso. Ao contrário de mim, ela ainda lembrava de comer. Arrastei o corpo até sentar. A garrafa rolou do meu colo e caiu no chão com um som oco. Não que eu ligasse.

— Eu tô indo... — murmurei antes de levantar e ir até a cozinha.

Peguei o saco de ração, e despejei no potinho dela, deixei mais do que deveria.

Aquela lembrança veio até mim mais uma vez.

Antes de morar com Isis, eu tinha outra pessoa...

Comentários

Postagens mais visitadas