25 - Parabéns Pra Mim
Parabéns Para Mim
Sábado, 20 de setembro de 2025
Hoje faço vinte e nove anos... mas nunca me senti empolgada nessa data. A casa está uma bagunça. Jornais empilhados na porta, louça que deixei de ontem, a cama uma zona e minha cadeira em frente à penteadeira está lotada de roupas para dobrar.
Isis está esparramada no meu sofá vermelho-vinho, ela não se importa com a minha bagunça, e talvez entenda que a casa é um reflexo da mente. A minha nesse caso, está sempre essa zona. Não importa o dia...
Mesmo assim sempre agradeço por não ver baratas. No fundo, quero acreditar que elas apenas temem o miado de Isis e não que ela as coma. Eca... Enquanto limpo a estante, a TV ligada me acompanha com aquela voz de jornal matinal que tenta soar calma, mas sempre parece estar anunciando o fim do mundo.
— [...] segundo testemunhas, o Vereador Conrad Relder foi surpreendido por Batman e a Mulher-Gato em sua própria residência, na noite de sexta. Os dois invadiram o local durante uma reunião privada e o sequestraram depois de colocarem ele e seus convidados para dormir. Apesar do ocorrido, o vereador não prestou queixa e também não procurou a polícia. Ele permanece internado em estado estável, após sofrer um ferimento grave na língua. As circunstâncias do ferimento ainda são desconhecidas...
Abaixei o volume com o controle, soltando um suspiro.
— Claro que ele não contou. — murmurei, pegando a caixa de transporte de Isis. — Faria de tudo para manter segredo sobre aquela seita nojenta...
Dei uma última olhada no apartamento, conferindo se estava tudo certo. Bolsinha pronta, casaco dobrado no braço. Coloquei Isis com cuidado na caixa — ela protestou com um miado agudo, mas não resistiu.
— Não me olha assim. Você vai ganhar patê gourmet ainda hoje. E muita comida boa da mansão Wayne. Alfred estava te deixando bem gordinha. Mas agora já deu uma emagrecida... espero que ele não brigue comigo por você estar assim.
Isis miou em resposta.
Desci as escadas e pedi o táxi. A cidade ainda parecia acordar devagar, as pessoas cruzando as ruas com café nas mãos e olhares fixos no nada. Mesmo sendo sábado, tudo ainda era bem movimentado. O carro chegou rápido. Entrei e me acomodei no banco de trás, segurando a caixa de transporte como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
E era mesmo.
— Para a mansão Wayne, por favor — disse ao motorista.
Ele me lançou um olhar curioso pelo espelho retrovisor, mas não disse nada. E ainda bem.
Todo ano, no meu aniversário, é o mesmo ritual. Passo o dia na casa dele. Bruce sempre se lembra dessa data primeiro que eu. Nunca deixou passar em branco, mesmo quando estava a mil mundos de distância, preso nas responsabilidades que só ele conhece. E por mais que o tempo tenha mudado tudo ao redor... isso permaneceu.
Ele era meu melhor amigo, afinal. Todas as outras amizades que eu tinha, me deixaram ao descobrir que eu era uma ladra... acho que é nessas horas que você vê quem é seu amigo de fato, ou não.
Por isso eu sorria, discreta, observando a cidade passar pela janela.
Diferente do aniversário passado, neste aqui, Bruce e eu não ficaremos separados por um vidro frio.
(...)
A mansão Wayne sempre me pareceu saída de um romance gótico — daquelas casas antigas que já viram mais do que deviam, que guardam segredos nas rachaduras da parede e sussurram memórias no ranger do assoalho. Aquela fachada imponente se impõe sobre a paisagem, cercada por árvores que há décadas deixaram de ser jovens. Ainda assim, ela mantém aquele ar respeitável, inatingível, como se o tempo ali fosse apenas um visitante tolerado.
Desci do táxi com Isis nos braços, ainda resmungando dentro da caixa de transporte. Caminhei até o portão, estava aberto. Entrei, passei pelo caminho de pedra, sentindo a brisa gelada que aquele lugar sempre teve desde que vim aqui pela primeira vez.
Parei por um momento, observando a fonte. A vegetação se espalhava como veias pelo concreto esculpido. Era lindo demais, e talvez meio mórbido. Mas eu adorava aquela vibe, e se pudesse passaria o dia admirando a beleza dessa mansão. Cada canto aqui parece único, especial de certa forma.
Isis miou novamente, fui em direção à porta, subi a pequena escadinha e bati naquela madeira escura. Isis miou de novo.
— Eles já virão, tenha calma... — troquei o peso de uma perna para a outra. Mesmo magrinha, Isis ainda pesava.
Depois de alguns segundos, a porta foi aberta e vi aquele rosto.
— Feliz aniversário, Selinne — foi a primeira coisa que Bruce disse ao me ver, com aquele sorriso discreto que poucos conhecem. — Vai entrando... — ele abriu espaço.
— Obrigada, Bruce. — Sorri de volta, sem conseguir esconder a sensação de que ali, ao lado dele, tudo ainda fazia sentido. — Trouxe a Isis. — mostrei a caixa brevemente enquanto entrava. — Alfred deve estar morrendo de saudade... embora ele nunca vá admitir. — cochichei.
Bruce riu com um breve suspiro, — Rir de fato, não fazia o estilo dele.
Soltei o fecho da caixa e, como esperado, Isis saiu com a elegância de sempre, farejando o lugar. Ela se acomodou rápido pela sala, era familiar para ela. Caminhei pelo ambiente. Tudo estava exatamente como antes. Os mesmos móveis, mesma iluminação tênue, as paredes escuras, mas acolhedoras.
— Essa casa continua igual à primeira vez que estive aqui... — comentei, passando os dedos pela lareira de pedra.
Acima dela, um porta-retrato em destaque. Meus olhos foram direto para ele. Era a foto do nosso aniversário de amizade. Bruce sentado na cadeira com um terno elegante, mas levemente desarrumado, e eu no chão, com uma pose descontraída e um vestido preto.
— Exceto por essa foto... — dei risada.
— É uma das minhas favoritas... — disse ele, aproximando-se por trás. — Foi a coisa mais legal e aleatória que fizemos, eu gosto dela. Foi um momento divertido, exceto para Alfred, que ficou carrancudo enquanto a tirava.
— Claro que você gosta, a ideia de tirar essa foto foi sua. E a pose foi minha. — sorri.
— Você sempre foi a mais fotogênica dessa amizade. — ele disse descontraído, colocando as mãos no bolso de sua calça.
Rimos juntos. E por um momento, tudo parecia leve.
Alfred entrou na sala com aquele jeito contido de sempre, mas seus olhos suavizaram ao ver Isis. Ele se abaixou, pegou a gata no colo e começou a fazer carinho com um cuidado quase cerimonial.
— Senhorita Selinne... feliz aniversário — disse, erguendo o olhar para mim.
— Obrigada, Alfred.
— Está fazendo 2.9?
Eu ri antes de confirmar.
A manhã passou sem pressa, passeamos pelo jardim, enquanto o almoço era preparado.
Nós conversamos, rimos lembrando de coisas absurdas do passado.
— Você se lembra daquela vez que inventamos de viajar juntos para a índia, e um indiano aleatório da rua, queria nos levar para conhecer sua cabra de estimação? — perguntei.
— Me lembro, também lembro que você passou mal depois de comer uma comida de rua.
— Céus! Nunca mais quero comer Kitchari de novo! — só dele mencionar aquele evento, meu estômago inteiro se contorceu. — Foi tenebroso...
Bruce riu.
Pouco antes da comida estar pronta, nós tomamos algumas bebidas que Bruce ganhou de seus amigos da alta sociedade. Demos notas para cada uma e tudo mais.
— Isso é o que eu menos gostei... Nota 2. — peguei a garrafa da mão dele e olhei o rótulo. — Leroy Domaine d'Auvenay Mazis-Chambertin Grand Cru...? Meu francês está correto?
— Está. Esse vinho é produzido na Borgonha. — ele pegou a garrafa de novo. — Pelo menos foi o que me disseram sobre ele.
— E qual a sua nota?
— Talvez eu tenha o paladar mais sofisticado. — ele cheirou a taça. — Dou nota 5.
— O quê?! Você só pode estar brincando, esse vinho é péssimo. Não vale nota 5, nem ferrando.
— Se comparar com o Domaine Leroy Richebourg Grand Cru, esse é superior.
Coloquei a taça na mesa.
— Não seja metido, você está querendo se amostrar, Playboyzinho.
Ele ficou sério, semicerrando os olhos.
— Seja honesto! — insisti.
Ele riu e colocou a rolha de volta.
— Vou manter a minha nota.
— Isso é inacreditável, eu me recuso a aceitar. Vamos, abra o próximo. Mas você vai dizer a nota primeiro.
— Pra você me contrariar? — ele deu um sorriso de canto, pegando a próxima garrafa.
— Claro que não... — peguei minha taça novamente.
Ele abriu a garrafa, serviu ambos e depois tomou primeiro.
— Domaine de la Romanée-Conti Montrachet Grand Cru, — ele mostrou seu francês perfeito, palavra por palavra, uma provocação. — nota 9,5.
— Minha vez. — tomei e senti o cheiro. — Nota 4,5.
— 4,5? Como você tem a audácia??
Segurei o riso.
— Não é tudo isso não. — ignorei seu olhar enquanto ele resmungava.
Depois do almoço, assistimos aos nossos filmes favoritos — aqueles que já sabíamos as falas de cor. Foi divertido dizer cada uma das falas juntos dos personagens. Também vimos filmes de terror e romance policial, Bruce sempre descobria quem era o assassino primeiro que eu.
— Não tem graça ver filmes de investigação com você. — joguei uma pipoca nele enquanto os créditos subiam.
— Uma pipoca, sério? Quantos anos você tem? — ele jogou outra, acertou bem na minha testa.
— Você devia ser detetive, porque sempre desvenda os mistérios. — joguei outra e ficou agarrado no cabelo dele.
— Acho que seria bom fazer disso um novo hobby. — ele jogou mais, mas usei a almofada de escudo.
Assim que vimos a sombra de Alfred chegando perto da sala, catamos todas as pipocas numa velocidade impressionante. Alfred puxou um carrinho com um bolo bonitinho e disse:
— Acredito que agora seja uma boa hora para o bolo.
No bolo, estava escrito à mão com chantilly preto "Parabéns Selinne" — meu nome estava meio borrado porque Alfred havia escrito "Selina" e tentado apagar, mas deixado rastros. Sorri, segurando a risada, achando muito fofo.
— Vamos cantar parabéns — disse Bruce se levantando, Alfred ficou ao lado dele.
— Não por favor, que tal pularmos essa parte? — me ajeitei no sofá.
Mas eles me ignoraram e começaram a cantar. Foi bem constrangedor, mas divertido mesmo que eu não admita. Ao comer, fiquei surpresa com o recheio, era o mesmo que daquele cupcake que eu não pude comer quando Bruce levou. Cada garfada era melhor que a anterior, ignorei minhas restrições ao açúcar e comi pelo menos 4 pedaços.
Alfred fez com carinho, e eu jamais poderia comer apenas um pedaço... Não que isso seja uma desculpa para comer mais. Sério... ou talvez. Mas quem pode me julgar?
Perto do fim da tarde, Bruce e eu estávamos sentados no jardim. Havia algo que eu precisava fazer... Algo que martelou na minha mente desde que fui presa.
— Bruce, eu tenho algo pra você... — me levantei do banco.
— Algo para mim? — ele me olhou curioso
— Isso... já volto.
Entrei na mansão novamente e peguei algo da bolsa, que deixei em cima do sofá. Isis dormia lá, mas ao me ver, levantou e me seguiu de volta para o jardim.
— Tenho que te devolver isso... — Entreguei a ele com um sorrisinho culpado.
Bruce franziu a testa, com aquele ar confuso e pegou o objeto. Era um simples garfo.
— Um garfo? — perguntou, rindo — Você me roubou um único garfo? Com tantas coisas valiosas aqui... — ele olhou para a mão e depois para o meu rosto.
— Eu juro que isso foi a única coisa que já roubei de você... — falei, rindo também, sem graça — Eu só... achei bonitinho quando vi sobre a mesa, Alfred havia preparado um jantar. E antes que eu pudesse me conter... eu... peguei sem pensar.
Bruce me lançou um olhar entre divertido e acusador.
— Você tinha bom gosto para furtos, pelo menos. — ele zombou, não parecia incomodado.
— Eu tinha... Mas ainda não devia ter feito isso, sinto muito..
— Está tudo bem, Selinne.
— Não. Não está.
Ele me olhou atento, não consegui decifrar seu olhar.
— A Cleptomania me forçou a isso... Eu me recusava a reconhecer... — me sentei novamente no banco. — Mas não houve um dia sequer, em que eu não me culpasse por isso... apesar disso, não tive forças para... contar, e devolver.
Ele assentiu de leve e colocou a mão no meu ombro.
— Está tudo bem, você não é mais aquela pessoa. E eu fico muito feliz que tenha tido a coragem de devolver e me contar sobre isso. Nós dois sabemos como foi... difícil pra você, e eu não sinto nada além de orgulho pela sua atitude.
Olhei para ele, mesmo sentindo as lágrimas prestes a invadir os meus olhos. Eu ainda sentia que não merecia aquela amizade, que não merecia Bruce ou... qualquer outra coisa.



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