22 - Miau
Quando cheguei à WayneCorp, passei meu crachá, entrei pelas portas abertas do elevador e subi até o andar do meu departamento. Corredores estavam limpos como de costume. Entrei na sala, não respondi o bom dia de ninguém. Aquela falsidade toda estava me deixando enjoada.
Pendurei minha bolsa na cadeira e me sentei, o computador me recebeu com uma tela azul de boas-vindas. "Digite sua senha..." Digitada. Errada. Tentei de novo. Errada. Terceira tentativa.
Computador bloqueado.
— Ótimo — murmurei, tentando não xingar em voz alta. — O que eu fiz de errado? Todos os números da minha senha estão corretos...
Duas colegas riram ali perto, sem sequer olharem para mim.
Levantei, fui até o suporte no andar debaixo. Ninguém. Nem um estagiário disponível para me ajudar. Voltei à mesa, tentei novamente depois de alguns segundos, mas nada. Ainda permanecia bloqueado.
Foi quando Mason apareceu, , algumas pastas debaixo do braço, com aquela mesma expressão apressada.
— Selinne, precisamos daquelas planilhas finalizadas antes do meio-dia, sua colega Cláudia disse que você estava cuidando disso. Precisamos disso dentro de algumas horas.
— Eu... ainda não consegui acessar meu computador. Ele não quer aceitar a minha...
— Resolva isso. Imediatamente. — ele nem esperou para ouvir a minha explicação.
Imediatamente.
Como se fosse tão simples.
Desci dois andares, peguei um computador emprestado no setor financeiro. Refiz as planilhas do zero. Trinta e sete abas. Números cruzados. Datas. Indicadores. Escrevi até o dedo formigar. Fiz absolutamente tudo de novo, cada número, cada dado e informação que eu havia me lembrado.
Subi com o arquivo pronto, salvei em três pendrives por segurança. Fui até a sala de Mason. A porta estava fechada, bati e esperei.
Ninguém respondeu.
Bati de novo. Uma das secretárias olhou por cima do monitor.
— Você não devia estar na reunião?
— Que reunião?
— Aquela com o departamento jurídico... começou faz meia hora no andar superior.
— ... Ninguém me avisou.
Ela deu de ombros, como se isso fosse problema exclusivamente meu.
Fiquei ali, em pé, com o arquivo nas mãos. Esperei mais vinte minutos, tempo suficiente para meu coração virar chumbo dentro do peito. Quando ele saiu da sala e voltou para o escritório, veio com aquele andar autoritário de quem já tá decepcionado.
— Selinne, onde você estava?
— Refazendo aquele material, senhor. Ninguém me avisou que teríamos uma reunião agora cedo. E senhor me pediu para...
— Isso não é justificativa. — interrompeu de novo. — Você precisa se antecipar nessas coisas. Ser proativa com sua equipe. Essas desculpas... não vão te manter aqui por muito tempo. Você precisa agir, todos estamos ocupados e não há espaço para erros aqui na WayneCorp. Não faça isso de novo. — ele disse alto.
Engoli seco, lutando internamente para não arranhar a cara enrugada dele. Entreguei o trabalho. Ele nem agradeceu. Nem olhou. Pegou de mal jeito da minha mão e voltou para a sala dele.
Voltei para a minha mesa, passando entre os sorrisos silenciosos. As meninas cochichavam. Uma delas fez um gesto para outra. Risadas abafadas. Fingiam que não era comigo. Mas eu sabia que era.
Respirei fundo. Liguei o computador. Ainda estava bloqueado.
Tive que reiniciar.
Tela preta. A inicialização foi lenta. Os arquivos que salvei ontem... sumiram. Tudo. Como se eu nunca tivesse digitado uma linha sequer. Fechei os olhos. Trinquei os dentes até o maxilar doer. Minhas mãos tremiam. Fiquei ali olhando a tela de novo, só que agora vazia, apenas a lixeira no canto.
A noite caiu sem nenhum aviso, nem mesmo percebi o céu escuro pela janela quando terminei de refazer a primeira parte de todo o trabalho que havia perdido. Saí da empresa com passos rápidos, vendo aquele carro escuro a distância. Bullock estava escorado no capô, mastigando alguma porcaria gordurosa e lendo uma ficha para disfarçar. Aquela postura relaxada me irritou profundamente.
— Ei, buldogue! — gritei.
Ele levantou o olhar devagar. Eu não parei e nem diminuí a velocidade dos meus passos. Chutei a lateral do carro com força. O alarme disparou, mas não me importei nem um pouco.
— Ei! O que você pensa que está fazendo? Quer voltar a cadeia?!
— Me deixa em paz! — explodi, os olhos ardendo. — Não quero mais ser vigiada por você! Eu tô tentando sobreviver nesse inferno de cidade! Só isso! Só isso, porra! Não estou fazendo nada de errado além de suportar essa vida, dia após dia!
Ele engoliu seco, um olhar que nunca imaginei ver.
— O que aconteceu?
— O que aconteceu?! Aconteceu que todo mundo parece estar sabendo o que fazer com a própria vida, exceto eu! Eu tô afundando e ninguém estende a mão, só pisam em mim. Só me puxam pra baixo!
Bullock largou o lanche em cima do carro. Me analisou como se eu fosse a cena de um crime. Cada expressão do meu rosto cansado.
— Você não parece bem, Selinne. — ele desativou o alarme do carro. — Você costuma ser cabeça quente, mas hoje parece pior.
— Sério, detetive? Que percepção brilhante você tem!
Silêncio.
Ele me olhou por mais uns segundos. Depois respirou fundo, pegou o lanche, os papéis e entrou no carro.
— Você teve um dia difícil no trabalho... isso é bom. Parece estar mesmo andando na linha.
Ele riu, deu a partida. E foi embora.
Eu fiquei na calçada, olhando seu carro dobrar a esquina.
Quando me acalmei, chamei um táxi pelo aplicativo. Quando o carro parou, entrei e fui embora para casa. Essa noite não pretendo esperar por Bruce, não quero que ele me veja tão estressada. A última coisa que eu quero que ele pense é que sou ingrata, e que não posso dar conta.
(...)
Por volta das 22 horas, não vi o carro do Bullock naquela esquina suja onde ele costumava se esconder. Nenhum brilho de farol. Nenhum pigarro abafado atrás da coluna de concreto. Parecia ter parado de me vigiar.
Me vesti de pressa, subi pela escada de incêndio com minhas garras, o corpo ainda estava tenso depois de um dia fodido, eu só queria um pouco de emoção. Quando alcancei o telhado, o vento gelado cortou minha pele como navalha. Ajustei minha máscara e a tiara em minha cabeça. Aquela velha sensação de liberdade voltou e eu precisava aproveitar cada segundo.
Ali em cima, entre antenas tortas e caixas d'água enferrujadas, respirei fundo. Gotham parecia menos sufocante quando vista de cima. A fumaça, os gritos, os faróis a distância nas ruas movimentadas — tudo virava cenário, como uma pintura viva, era lindo, morbidamente lindo.
Recuei alguns passos para trás e então saltei o prédio. Senti os músculos relaxarem durante a queda, como se me agradecessem por essa pequena emoção. Mas não era suficiente. Pulei de prédio em prédio, me esgueirando entre uma coluna e outra, escalando paredes e escadas de emergência. Ágil como sempre fui, sentindo aquele vento delicioso no meu rosto enquanto aterrissava com perfeição em meus saltos.
Me movia sem pensar, até que o som de vidro quebrado chamou a minha atenção. Me pendurei em um parapeito qualquer.
Olhei para baixo.
O som vinha de um mercado de esquina, era pequeno, como aquele que trabalhei aquela vez. Lá dentro, três caras mascarados empurravam o caixa contra a parede. Um deles ameaçava uma funcionária com uma barra de ferro.
Eu podia ter ignorado e continuado nos telhados como a gata de rua que sou.
Mas não ignorei. Ainda sentia raiva e só queria descer o cacete em alguém. Desci pela lateral, arranhando as paredes, chutei a porta dos fundos e entrei com a força de um furacão. Um deles me viu tarde demais. A canela dele encontrou meu salto afiado. O nariz, meu cotovelo.
Outro tentou me segurar. Só tentou. Em segundos, estava no chão, cuspindo sangue e dentes.
— Fique longe de mim! — gritou o último.
— Longe de você? Mas que grosseria. — dei um passo lento em direção a ele. — Eu costumo ser bem possessiva com meus ratinhos. — ajustei minhas garras.
Ele tentou fugir pelos fundos, mas chutei sua costela e ele esbarrou em uma prateleira.
— Você pensa que vai a algum lugar? Adoro brincar com a comida. — Avancei sobre ele, enfiando minhas garras em suas axilas.
Ele gritou.
Os outros dois engatinhavam para fora, gemendo de dor, machucados, arranhados.
A atendente tremia atrás do balcão. Não disse nada. Nem obrigado. Nem um grito sequer.
Amarrei os três com uma corda que achei na prateleira. E então só acenei com a cabeça antes de fugir por de onde vim.
Em outra rua, vi uma mulher tentando afastar dois babacas que riam alto demais, se aproximando demais. Um deles segurava o braço dela. Ela tentava se soltar.
— Me deixa em paz, eu não quero! — ouvi ela dizer.
Me levantei devagar das sombras, e então saltei no beco escuro.
— Miau... — murmurei.
— O que foi isso? — ouvi um deles dizer, olhando ao redor.
— Não sei, vamos logo com isso...
— Miau... — fiz de novo.
Eles olharam para o beco.
— Isso foi um gato? — um deles disse novamente.
— Não sei, porra...
A mulher tentou se soltar deles, mas foi jogada na parede.
— Fica paradinha! — o mais nojento começou a apalpar a mulher.
— Não por favor...! — ela começou a chorar, assustada.
— Mi... au. — saí das sombras, o olhar fixo neles.
— O quê? — o segundo me olhou. — Que porra é essa?
Me abaixei, performando. Fiquei de quatro, o olhar safado.
— Ninguém quer brincar com essa gatinha aqui? — fiz a minha voz mais sedutora.
Um deles riu.
— O que é isso agora? Mais uma maluca?
O outro deu um passo na minha direção, seduzido.
— Não sei qual é a dela... mas com essa roupa. Está pedindo.
— Porque não deixa a moça ir, e brincam comigo? — me ergui um pouco, passando a mão pelo corpo.
— Você só pode ser maluca... mas eu gostei. — quando o segundo se aproximou mais, foi a hora de agir.
Meu pé escorregou em arco, passando uma rasteira nele. Os dois gritaram.
— Qual é a sua?! — gritou o primeiro, ainda segurando a mulher.
— Qual é a minha? — sentei em cima do segundo e enfiei minhas garras no pescoço dele. Mal podia gritar de verdade. — Adoro uma brincadeira mais... selvagem.
— Vadia! — o primeiro gritou se aproximando com uma faca. A mulher fugiu gritando
— Seja gentil, — me levantei. — mesmo que essa não seja a minha primeira vez...
A sola da minha bota atingiu o estômago dele com força. Tossiu. Desviei da faca. Contra-ataquei. Queixo. Costela. Joelho. Ele caiu babando em uma poça de água suja.
— Babacas normais como vocês, não são nada divertidos de brincar. — pisei no pescoço do segundo, ainda sangrava. Ele não morreria, mas provavelmente nunca mais conseguirá falar normalmente.
A mulher que fugiu não agradeceu. Nem olhou para trás. Fiquei ali alguns segundos, encarando ambos no chão. O coração acelerado, o sangue quente correndo nas veias e nas minhas mãos. Comprei um lanche barato numa lanchonete aberta. Fritas frias, um hambúrguer triste. Mas era comida. E depois de toda aquela emoção, parecia suficiente.
Entrei pela janela como de costume. Mas senti aquela presença, ele estava em casa.
— Parece que o papai está em casa. — fui até a sala.
Batman não respondeu. Só continuou alimentando Isis, que ronronava próxima a ele, como se ele fosse o dono dela desde sempre. Era como se o conhecesse...
— Descobriu algo da noite passada? — perguntei, encostando na parede, mordendo a primeira batata. — Você nem me ligou...
— Conrad Relder. Vereador de Metropolis. Mudança no padrão de comportamento desde 2009. Está em observação desde ontem.
— Sempre tão direto... — murmurei. — Mais um político corrupto? Surpresa zero.
— Relder ganhou dois gatos de raça recentemente. Há uma movimentação estranha na casa. Os empregados foram dispensados de uma hora para outra. — ele me olhou e se levantou depois de deixar o potinho de Isis cheio.
A batata caiu no papel engordurado.
— Gatos?
— Siameses. Todas fêmeas.
— Parece que eles têm preferência por gatas... Isso está ligado ao ritual deles?
Ele não respondeu, mas era óbvio que sim.
Larguei o lanche na mesa.
— Então a noite ainda não acabou — murmurei. — Bullock não está mais no meu pé.
— Notei.
— Sabe o que isso significa? — sorri de leve, me aproximando.
Batman não respondeu. Não precisava.
— Parece que a noite será... selvagem. — segurei seu rosto e o beijei, foi delicado, mas ele retribuiu.
— Vamos. — ele se afastou, indo em direção à janela.
Dei alguns pulinhos e uns gritinhos de emoção. Não via a hora de arranhar alguém de novo.
Batman parou e me encarou. Me contive.
— Desculpa... — arrumei meu vestido, constrangida. — Talvez eu tenha deixado a Selinne sair um pouco...
Ele abriu a janela e passou primeiro. Fui atrás.
— Isis, mamãe já volta. — fechei a janela, ouvindo Isis ronronar.



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