20 - Jogo de interesses
Hoje elas me deram bom dia. Uma por uma. Como se fôssemos colegas de verdade.
Cláudia me ofereceu um café. Helena puxou uma cadeira para mim. Lúcia comentou que eu parecia mais descansada. Talvez eu estivesse. Talvez a noite anterior tenha deixado marcas boas...
Sentei na minha mesa com um leve receio de olhar para o lado e perceber que era tudo uma miragem. Mas não era. Elas estavam calmas, sorridentes. Como se algo tivesse mudado. Como se eu tivesse finalmente sido aceita.
Talvez só estivessem num bom dia. Ou talvez tivessem se arrependido de como me trataram antes. Sinceramente não sei.
Mas quando Helena se aproximou da minha mesa perto do meio-dia, e disse com uma voz quase gentil:
— Seli, você pode buscar o nosso almoço ali no Verde no Pote? A gente já fez o pedido, só falta retirar. Tá no nome da Cláudia.
Eu sorri.
Claro que eu podia.
Fiquei com vontade de agradecer pela chance. Uma missão de confiança. Pequena, cotidiana, mas com um significado, mesmo que simples. Eu podia fazer isso. Podia mostrar que estava dentro. Que queria fazer parte daquele lugar.
Peguei minha bolsa, os nomes anotados num papel amassado, e fui andando pelas ruas do centro com aquela expectativa de uma adolescente no peito. Talvez fosse hoje.
O dia em que deixariam de me ver como um corpo estranho naquele espaço.
A comida já estava pronta. Quatro potes, cada um com o nome de uma delas. O atendente me entregou as sacolas e desejou um bom almoço. Saí dali me equilibrando com cuidado, como se fosse vidro fino. Na volta, senti o calor do sol bater no rosto.
E por um momento, acreditei. Deixei os pedidos na sala. Elas agradeceram. Cláudia até me chamou de "querida". Comentaram sobre comermos todas juntas lá no refeitório.
Depois disso, elas saíram aos poucos, uma por uma. Com garrafas de água, bolsas e celulares.
— A gente já vai lá, tá? — disse Helena. — Pode arrumar um lugar legal?
Concordei, guardei minhas coisas e a bagunça da minha mesa e fui até o refeitório. Coloquei meu pote na mesa. Escolhi um lugar central, onde caberiam todas. Peguei talheres extras. Me sentei e esperei por elas.
Primeiro foram cinco minutos. Depois dez. Depois mais quinze...
Não era atraso, e o banheiro não poderia estar tão lotado. Elas não estavam vindo.
Levantei os olhos e olhei ao redor, procurando por elas no refeitório. Quando me levantei um pouco, o suficiente para ver pela janela, vi as quatro sentadas no jardim lateral da empresa. Rindo e dividindo guardanapos. Mostrando fotos umas às outras ou vídeos no celular.
Enquanto eu segurava meu garfo, suspirei e me ajeitei na cadeira novamente.
Mastiguei devagar. Sozinha.
E pela primeira vez, senti que ser uma ladra era mais fácil do que ser uma funcionária qualquer.
Lá na escuridão, pelo menos, tudo era mais claro aos meus olhos. As pessoas vinham até mim e queriam coisas, havia trocas mútuas de favores. Mas ninguém fazia parecer que gostava de você... não mesmo.
Aqui... é tudo diferente. As pessoas usam o próprio rosto nu de máscara. Você mal consegue diferenciar um mocinho do vilão. Não é engraçado? Até meio irônico, se não fosse tão trágico.
E ainda assim, mesmo nessa situação merda, não chorei.
Fechei os olhos e me deixei levar por uma lembrança recente.
A noite passada.
Com meu doce amigo Bruce.
Ele tinha insistido em me deixar em casa.
— Você precisa comer — disse ele, já dentro do meu apartamento, olhando as prateleiras quase vazias. — Vai pedir algo?
— De jeito nenhum, vou fazer o que tem aqui. — tirei meus sapatos e liguei a TV. Isis estava no sofá, dormindo como se não houvesse amanhã.
— Vai cozinhar? Eu te ajudo. Aceitei a ajuda, e fizemos um macarrão. Ficou péssimo, mas ele comeu sem reclamar. Foi até engraçado ver aquela cena, alguém como ele, que come hambúrguer de garfo e faca, na minha casa, lutando para engolir um macarrão meio duro e sem sal.
Aquela noite foi agradável, falamos sobre coisas antigas. Coisas leves, nem tocamos no assunto da minha vida como Selina. Ele me falou um pouco da infância com Alfred. Me contou que, quando era criança, Alfred escondia todos os doces da casa, porque Bruce comia tudo. Mas seu pai Thomas comprava escondido e deixava guardado dentro do quarto da mãe dele, em um armário pequeno perto da cama em que ela se recuperava. Uma noite ele disse que entrou no quarto na ponta dos pés, pegou o pote de doce e comeu tudo, mas ficou com uma dor de barriga terrível no dia seguinte, e precisou fingir que tudo estava bem, até nada disso acabar bem e o banheiro estar longe demais para chegar correndo.
Eu ri. Eu ri de verdade. Ri muito, imaginado o pequeno Bruce naquela situação constrangedora.
Fazia tempo que não ria assim.
— Nunca vi Alfred tão irritado, — disse Bruce lutando para engolir aquele macarrão. — acho que até meu pai deve ter ficado com medo dele.
Sorri contente, e voltei minha mente para a mesa no refeitório com essa lembrança presa na memória.
Terminei meu almoço. Joguei fora os guardanapos. Voltei para o computador. Em silêncio. Não estava triste, não o suficiente para chorar pelo menos. Eu vou resistir, dias melhores devem chegar...
(...)
A noite chegou arrastando os pés.
Depois de um banho longo e um jantar sem gosto, me joguei no sofá com uma coberta nas pernas e o som da cidade ao fundo. Gotham parece mais calma quando a gente está cansada demais para lutar contra ela.
Estava quase pegando no sono, os olhos começando a pesar, quando senti aquela presença forte. Um movimento sutil no escuro. O som abafado de uma janela que se fecha sem bater. E então, a sombra familiar se aproximando da luz fraca do abajur.
— Não conhece a porta? — perguntei, sem surpresa.
— Há câmeras nos corredores. — ele respondeu com aquele tom baixo, cortante, como se estivesse sempre dizendo só a parte mais necessária da frase.
Batman.
Ele estava com a capa ainda molhada, pingando água no meu carpete caríssimo. Era algo entre suor e chuva... Ou talvez fosse sangue de algum criminoso.
— Saiu outro resultado do segundo teste de DNA — ele disse, direto.
Me endireitei no sofá, puxando a coberta com uma mão, enquanto a outra afastava o cansaço como se fosse um bicho em cima do meu rosto.
— Quem é?
— Um ex-fuzileiro chamado Caleb Marsh, ele sumiu por um tempo, foi dado como morto. Agora faz parte de alguma coisa maior no submundo de apostas.
— E onde ele tá agora?
— Em um depósito abandonado nos limites da zona industrial, vou até lá.
Minha respiração acelerou e me levantei, determinada.
— Me leva com você.
Silêncio.
Ele abaixou o olhar por meio segundo, quase como se estivesse pedindo desculpas. Mas Batman não pede desculpas... sempre fica nas entrelinhas.
— Não posso. Bullock tá te seguindo. Desde ontem.
— Argh... eu percebi... ele não larga do meu pé. Mas não há um modo de despistarmos ele?
— O cerco está ficando mais apertado. Será melhor pra você, se continuar aqui nessa rotina de trabalho e casa.
Virei de costas.
Fechei os olhos.
Mordi o lábio.
— Então você vai ter que ir sozinho... Que saco.
— Eu vou. E vou fazer ele falar. Pode apostar nisso.
— E eu fico aqui... presa nesse teatro social de gente falsa, puxando sorrisos enquanto eles me enterram viva. A vida de uma assalariada não é nada interessante, sabia?
Ele não respondeu. Porque não havia o que me dizer. Ele veio até mim. Colocou uma das mãos enluvada no meu ombro. Leve. Como se fosse peso de papel. Mas ali havia algo firme ali...
— Descanso é estratégia. Não covardia.
— Nem todas as pessoas pensam assim... Algumas pessoas gostam de adrenalina, pra se sentir mais vivas. Você deve saber bem disso.
— Eu sei. Mas faço o que faço porque sou um dos únicos que pode.
Suspirei sem mais forças para continuar sustentando meu argumento. Dei um sorriso curto, quase amargo.
— Vai lá, então. Quebre alguns ossos por mim... faça eles sofrerem. — me virei e olhei seu rosto. — Mas me conte tudo o que descobrir, não importa o quão ruim seja.
Ele assentiu suavemente. Me aproximei com um leve sorriso e o beijei. Foi delicado, um contraste com a outra noite. No começo ele não reagiu, mas pareceu aproveitar antes de retribuir.
Então ele desapareceu como sempre. Pela janela, sem barulho. Só o vento entrando por onde não deveria. E eu fiquei ali sozinha na sala. Amaldiçoando Harvey Bullock por me tirar a parte mais divertida da noite.



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