19 - Quando a sociedade te rejeita

 
Sonhar devia ser... sei lá, um alívio. Um refúgio para pessoas cansadas da realidade em que vivem. Mas essa noite, foi só mais um lugar onde minha consciência se escondeu para me torturar.

Estava no parque. Aquele de antes, o meu favorito. O velho balanço ainda rangia quando subia, e o céu era claro, sem nenhuma nuvem. Minha mãe me empurrava devagar, sorrindo, os olhos suaves como eu me lembrava, ou pelo menos como gosto de lembrar. A brisa fazia o cabelo dela dançar, e por um instante, tudo parecia calmo.

Essa era só mais uma das poucas lembranças da minha infância.

Mas então, ali, entre as árvores... percebi alguém.

Uma mulher estranha.

Ficou parada na sombra daquela árvore de copas cheias, só me observando. Eu não conseguia ver o rosto com clareza, mas a sentia. E sentia que ela olhava direto para mim. Imóvel. Como se fosse feita de pedra, penso que talvez eu tenha apenas me confundido, e que era apenas uma estátua que minha mente projetava de uma forma defeituosa. O balanço ainda ia e voltava, e minha mãe ainda sorria, mas eu não conseguia mais prestar atenção. Só conseguia encarar a figura imóvel ali no fundo, parecia fora daquela realidade, não sei dizer. Talvez as cores opacas, contrastando com o espaço acolhedor ao meu redor, não sei... Mas era estranha, quase hipnótica.

Quando pisquei, ela havia sumido.

Virei o rosto para minha mãe, como quem busca abrigo depois de uma tempestade ou sei lá. Mas o sorriso dela não estava mais lá.

No lugar, havia algo... errado. Muito errado.

A pele do rosto estava rasgada, os olhos sem brilho, sangue escorrendo pelo queixo e pingando no gramado. A boca ainda movia, tentando formar palavras, mas tudo que saía era um som abafado, quase como o estalar de ossos. E então o balanço parou.

Acordei pegando ar, o corpo tremendo. Suando frio. Os lençóis enrolados nas minhas pernas como se eu tivesse lutado com eles a noite toda. Levei uns bons segundos para entender onde estava, processar aquele sonho estranho.

— Só foi um sonho... — murmurei para mim mesma, mesmo sem acreditar de verdade.

Tomei um banho rápido, vesti qualquer coisa que parecesse profissional o bastante, e peguei um táxi para WayneCorp. O céu lá fora ainda estava nublado, engolindo a cidade com aquele cinza que não passa nunca. O táxi seguia pela Marginal Norte, e o rádio falava mais alto que os motores.

— [...] e foi na madrugada de domingo para segunda que o vigilante conhecido como Batman enfrentou novamente o criminoso foragido, Bane — dizia o locutor, com aquele tom teatral de sempre. — A luta aconteceu nos arredores do antigo distrito industrial, e testemunhas relatam que o morcego arrancou todos os tubos de alimentação do vilão, deixando-o debilitado. Em seguida, quebrou as duas pernas de Bane, o deixando incapacitado. A polícia chegou antes que o vigilante desse o golpe final. Batman fugiu antes de ser abordado. Bane está sob custódia e será transferido para a cela máxima do Asilo Arkham após uma série de cirurgias de reconstrução em seus ossos.

O taxista, um homem de voz rouca e boné amassado, soltou um suspiro pesado.

— Deviam ter deixado ele acabar o serviço. Esse cara é um monstro. A cidade teria agradecido. Um maluco a menos não faria falta.

Não respondi.

Continuei olhando pela janela, tentando ignorar a náusea que a notícia trouxe. Eu já sabia que Bat não era mais o mesmo. Todos sabiam, todos viam... E como ele mesmo disse antes, um "mal necessário".

Desde a morte do Coringa... ele ficou mais sombrio ainda. Mais "cruel". Como se a linha entre justiça e vingança tivesse sido apagada com o sangue que derramou naquele dia. Fechei os olhos por um segundo. Vi o rosto desfigurado da minha mãe no sonho, foi perturbador, mas os detalhes estavam desaparecendo outra vez. Como se aquela boa lembrança tivesse sido manchada, infectada...

Talvez tudo esteja mesmo se desfazendo em mim... Meu passado, principalmente, desde a minha queda. Talvez eu só esteja fingindo que não... Tentando ignorar.

Mas eu... eu ainda estava indo trabalhar. Ainda estava tentando.

E talvez, só talvez, isso ainda signifique alguma coisa.

(...)

Entrei na WayneCorp e o som abafado de risadas morreu no instante em que atravessei a porta do escritório. O riso das outras parecia dissolver no ar como se minha presença contaminasse aquele lugar também.

— Bom dia — murmurei, por educação.

Nenhuma delas respondeu. Apenas desviaram o olhar ou fitaram a tela do computador como se eu fosse invisível. Me sentei na minha mesa, respirei fundo e comecei a revisar a planilha de relatórios semanais que eu havia deixado para hoje. Não era minha função organizar aquilo, mas uma delas — Cláudia, acho — tinha me pedido ontem, quase como se fosse uma gentileza. Eu aceitei. Tinha aceitado tudo. Talvez eu apenas seja o estereótipo dessas novatas que querem mostrar serviço...

Trabalhei em silêncio, linha por linha, número por número. Confirmei cada valor três vezes. Quando terminei, levantei, fui até a impressora, retirei as folhas ainda quentes e as entreguei na mesa de Cláudia.

— Aqui estão os relatórios que você pediu.

Ela pegou o papel sem me olhar. Deu uma folheada, fez uma careta exagerada e logo em seguida... amassou a folha.

— Nossa, Selinne... até quando você parece fazer certo, você faz devagar demais. Isso aqui tava bom, mas eu vou refazer... na próxima eu me viro sozinha, obrigada.

Outra, a de cabelo preso num coque apertado, suspirou alto, sem disfarçar o tédio.

— Qualquer uma entra nessa empresa agora, hein?

Não respondi. Voltei para minha mesa. Sentei. Abri a planilha de novo e revisei cada campo, mesmo sabendo que estava tudo certo. Na hora do almoço, deixei o andar abafado e subi até a cobertura. Queria ver Bruce. Só por um segundo, trocar uma ideia e ver como estava sendo a manhã dele.

A secretária dele me parou antes mesmo que eu alcançasse a grande porta.

— O senhor Wayne não está disponível hoje. Reuniões externas.

Assenti. Não insisti.

Já estava acostumada a algumas ausências de Bruce, e eu jamais o cobraria por qualquer atenção. Ele era um homem ocupado, e sempre respeitarei isso.

Desci até o refeitório. Me sentei sozinha com uma bandeja de comida que eu mal sentia o gosto. Ao redor, os sussurros se acenderam como fósforos queimando de mesa em mesa.

— É ela, né? A amiga problemática do Bruce.

— Aquela que sumiu por um tempo... ouvi dizer que foi presa.

— Por furto, dizem. Mas ninguém sabe o que ela roubou...

As palavras não eram tão baixas quanto pensavam. Ou talvez fossem. Talvez meu ouvido tivesse ficado bom demais para esse tipo de coisa.

Me levantei, deixei minha bandeja na mesa e saí.

Não voltei ao escritório.

Fui para casa, respirei fundo, e fiz todo o trabalho da tarde no meu quarto. Era silencioso. Limpo. Controlável. Ninguém me olhando como se eu fosse um erro prestes a acontecer.

Eu sabia o que diziam. Sabia o que pensavam de mim. E, mais do que tudo, sabia que estavam testando os limites da minha paciência.

Mas eu também sabia de outra coisa.

Eu não sou paciente. Nunca fui.

E por isso, vou continuar me calando. Engolindo a raiva. Me ocupando. Porque a outra alternativa... é perigosa demais. E eu vou acabar machucando muito algumas pessoas. Tanto, que o que Batman fez a Bane vai parecer brincadeira de criança.

(...)

Cheguei mais cedo no dia seguinte. Cabeça fresca, sem pesadelos estranhos.

Quarenta minutos antes do expediente começar, o escritório ainda estava meio escuro, com poucas luzes acesas no ambiente. Gostava mais assim. Sozinha, em silêncio, eu podia respirar — e trabalhar.

Liguei o computador no meu tempo, organizei a área de trabalho, separei todos os arquivos, renomeei pastas, criei atalhos. Passei a noite assistindo vídeos, lendo tutoriais e salvando PDFs sobre relatórios, planilhas, automatizações. Eu não ia mais dar margem para errar. Nem para ser subestimada.

Quando terminei, levantei e entreguei os documentos. Estavam impecáveis. Não havia um erro sequer.

Cláudia olhou, leu em silêncio, virou a folha, leu de novo. Os olhos dela piscaram brevemente com surpresa, mas... nada. Nenhum comentário. Nenhum elogio. Apenas um gesto com a cabeça, como se eu tivesse feito só o mínimo.

Tudo bem. Eu também não esperava nada, mas foi satisfatório ver como ela não podia reclamar de mais nada.

Na hora do almoço, fui direto para o refeitório. Peguei minha bandeja, me sentei num canto qualquer e comecei a comer enquanto lia uns papéis do trabalho. Estava revisando para onde iam às doações corporativas do meu setor. Causas animais.

A maioria das ONGs estava na lista de espera. Uma chamou minha atenção: A Fundação Cobblepot, do Pinguim.

Pensei por um tempo. Se eu conseguisse mover alguns pauzinhos... dar um jeito de adiantar o processo... talvez ele não desistisse desse novo caminho. Talvez fosse mais fácil continuar fazendo o bem se o mundo mostrasse alguma retribuição... ele teria mais sorte que eu até o momento.

Foi aí que os passos firmes e o som baixo das vozes ao redor anunciaram que alguém importante havia entrado.

Todos olharam.

Bruce.

Ele passou pelo refeitório, como se fosse parte do cenário — como se o mundo já estivesse acostumado a girar em torno dele. E bem... aquela era a empresa dele, então meio que era verdade. Todos o cumprimentaram, mas ele não respondeu ninguém realmente. Veio direto até mim e se sentou na minha frente.

— Selinne, por que você não me esperou ontem pra irmos embora juntos?

— Eu... saí mais tarde da empresa. E achei que você já tivesse ido.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Saiu mais tarde no seu primeiro dia?... A não ser que tenha escolhido fazer hora extra... foi isso?

— Eu tive que refazer alguns dos arquivos. Disseram que não estavam bons o bastante. E como foi o meu primeiro dia, tive que me esforçar em dobro.

Ele abriu a boca para dizer algo, mas me apressei em continuar antes que parecesse que eu estava reclamando.

— Eu fui até o último andar na hora do almoço... queria te ver, mas a secretária disse que você tinha saído. Estava em uma reunião externa. Algo assim.

Bruce demorou a responder e colocou a mão sobre a minha, gentilmente.

— Na verdade, tive um imprevisto. Precisei sair mais cedo.

— Tudo bem — sorri de leve — Você é o CEO, pode sair a qualquer momento, não precisa se explicar. — sorri quase rindo.

A resposta arrancou um sorriso breve dele. Mas não tivemos tempo de dizer mais nada. Minhas colegas de trabalho surgiram como um enxame: sorrindo, puxando cadeira, trazendo suas bandejas.

— Ai, que bom que você está aqui, Selinne. A gente ia mesmo te chamar!

— Senhor Bruce, que surpresa te ver por aqui! — uma delas se inclinou para o meu lado. — O senhor nunca desce até o refeitório...

As vozes delas se atropelavam. Eram risos forçados, frases doces, elogios exagerados.

Eu sorri de volta. Fui educada. Mas a vontade real era de levantar e ir embora sem olhar para trás. Detesto ratas falsas.

Bruce olhou para o relógio no pulso, que emitiu um aviso sutil. Ele se virou para mim com uma expressão mais séria.

— Me desculpa sair assim apressado de novo. Preciso resolver algo. Mas me espera, tá? A gente vai embora junto hoje.

— Tá bom — respondi, sem pensar muito. — Até mais tarde.

Ele se levantou, deu um leve aceno de cabeça e foi embora.

As outras ficaram em silêncio por um momento, trocando olhares como se eu fosse tonta demais para notar... e logo em seguida também se levantaram. As cadeiras arrastando friamente no chão.

E então eu estava sozinha de novo.

Mas agora... com um leve sorriso.

Talvez não seja tão difícil continuar. Acho que posso continuar vivendo dessa forma até encontrar novos propósitos. Mesmo que seja difícil...

Mesmo que essa nova vida insista em me rejeitar todos os dias.

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