16 - Questão de Segurança Pública

 
Era quase três da manhã quando entrei pela janela e a fechei atrás de mim. Arranquei a máscara do meu rosto e joguei no chão. Meus pés mal tocavam o chão enquanto atravessava o lugar silencioso, temia acordar o vizinho do andar de baixo. Puxei os cadarços da bota e a tirei enquanto dava leves saltitadas. Arranquei o chicote enrolado na cintura e o deixei no chão de madeira fria. Era minha casa mesmo, e ninguém se importaria com o meu desleixo.

Soltei o fecho do vestido atrás do pescoço. Arrancar as luvas do braço ferido foi agonizante. Terei que costurar o buraco da bala novamente. Sou ágil em desviar, mas minhas roupas pagam o pato pelos tiros de raspão. Sério, a mira deles deveria ser melhor. Será que ser péssimo em atirar nos outros, é um requisito mínimo na hora de contratar capangas? Os vilões deveriam contratar só a elite, mas contratam esses "zé-ninguém", talvez eles valorizem mais números que certas habilidades fundamentais? Argh este seria um roteiro preguiçoso.

Comecei a puxar o vestido colado.

— Final de semana agitado?

Pulei alto.

Meu corpo inteiro arrepiou.

— Cristo! — meu sussurro foi quase um grito.

— Batman. — ele disse de braços cruzados, me encarando daquele breu.

— Porra, não sabe ser uma pessoa decente e me visitar outra hora?... — recuperei a compostura, puxando o vestido de volta para o quadril. — Quer me dar um ataque cardíaco?

Ele não respondeu. Deu um passo adiante, o suficiente para que a luz do poste de fora contornasse a silhueta dele. O capuz, a capa, a mandíbula apertada de sempre. O mesmo silêncio opressor de quem julga o mundo e a si mesmo ao mesmo tempo.

— Isso parece feio — disse, apontando com o queixo para o corte em meu braço.

Revirei os olhos.

— É só um arranhão, nada demais.

— Vou pegar o kit. — ele foi direto até o armário ao lado do fogão, como se morasse comigo. Como se conhecesse tudo nesse lugar.

Sentei-me na beirada da cama, permitindo seu cuidado. Ele ajoelhou à minha frente, abrindo a caixinha branca. Fez a limpeza, algodão, antisséptico e me deu um remédio de seu cinto, para uma eventual infecção.

— Sempre tão preparado, né? — olhei suas mãos firmes envoltas naquelas luvas de pano e metal, gestos eram cuidadosos. A dor veio quando ele passou o álcool, mas não reclamei. Estava ocupada demais tentando entender o que diabos ele ainda fazia em Gotham àquela hora.

— Sei do lance de morcego e tudo mais, mas você nunca dorme de fato? — olhei seu rosto enquanto ele enrolava uma faixa no meu braço.

— Durmo. Mas faço isso a cada algumas horas.

— Céus, isso é desumano... você trabalha sozinho, mas já pensou em arrumar um parceiro? Alguém que pudesse tomar conta da cidade enquanto você dorme.

Ele levantou a cabeça, parando por um breve momento.

— Uma vez, mas ninguém merece viver a vida que vivo. Portanto, trabalho bem sozinho.

— Entendo... ah, nem tanto...

— Estava com o Pinguim? — ele declarou baixinho, foi mais uma afirmação do que uma pergunta de fato.

— Como sabe?

— Suas botas tem resíduos de barro, ferrugem e sangue seco. Um frigorífico. O único lugar possível era no novo esconderijo de Pinguim.

— Cruzes, você adivinhou isso só olhando? — resmunguei. — Enfim, sim. E descobri o que o Pinguim tá aprontando, tudo começou com gatos sendo capturados de becos.

— Por que não me chamou?

— Achei que estivesse ocupado. Salvando órfãos. Esmagando cartéis. Lidando com aquele maníaco do Victor Zsasz de novo. Ou... sei lá.

Ele levantou os olhos para os meus.

— E então? — perguntou.

— Uma ONG. Resgatando animais. Os gatos foram levados pra lá. Chipados, vacinados, limpos... e alimentados.

Ele ficou quieto, mas vi seus olhos brancos se estreitando.

— Consegue acreditar? O filho da puta tá virando o novo protetor dos bichos. Parece que agora quer salvar Gotham, começando pelos gatinhos de rua... Será que ele vai tentar um cargo na presidência dessa vez? Como prefeito não acabou bem.

— Isso não soa como ele — disse Batman, terminando de enrolar a faixa. – Quero acreditar... que ele mudou. Mas se não mudou, vou ter que lidar com ele de forma mais definitiva.

O silêncio que veio depois dessa frase foi mais desconfortável do que qualquer coisa. Então eu respirei fundo. Precisava perguntar... Tinha uma dúvida há tempos, mas nunca tive a oportunidade de mencionar.

— E o Coringa?...

Ele travou. Fechou a caixa devagar, como se o estalar do plástico fosse mais fácil de ouvir do que minha pergunta.

— A gente nunca falou sobre isso... — insisti. — Sobre como você se sente. Talvez... seja a hora de falarmos disso?

Os olhos dele fugiram dos meus. Ele se levantou, mas não foi embora.

— ... Eu não queria cruzar essa linha — disse. A voz dele estava mais rouca que o normal. — Não era parte do plano. Não era parte de mim. E definitivamente não era a minha conduta.

Peguei um travesseiro e abracei. Deixei que ele falasse no tempo dele. Quando o Bat matou o Coringa e o Duas caras, eu estava presa.

— O Coringa tinha reféns naquele hospital. Ia matá-los. Ia continuar matando depois. Eu pensei em todas as alternativas. Mil novecentas e vinte e duas possibilidades. Em todas... alguém morria. Ou o pior acontecia depois.

— Então você decidiu ser o carrasco... — murmurei.

— Alguém precisava ser. Alguém que entendesse o peso. Que não gostasse disso, mas fizesse mesmo assim. Assim como existe a pena de morte. Assim como existe legítima defesa. Ele era uma ameaça pública. Era uma bomba que não podia continuar viva. Sua insanidade nunca teria um fim, e ele ficaria pior a cada semana. Não dar um fim nele, deixaria as minhas mãos cobertas de sangue inocente... mesmo que indiretamente.

Fez uma pausa.

— Se ninguém mais consegue parar os maníacos dessa cidade... Então talvez eu seja o mal necessário. Talvez essa seja minha função em Gotham.

Ficamos quietos. Só os ruídos da cidade. Eu pensei em mil respostas, mas nenhuma parecia mais verdadeira do que o silêncio entre nós. Ele já era um homem quebrado antes, mas depois da morte do Coringa, as coisas pioraram. Havia uma sombra espessa sobre Gotham, e todos os olhares se voltavam para ele.

A forma como ele dizia aquilo... como se já tivesse decidido carregar o mundo nos ombros e os pecados nos punhos. Como se ser o carrasco fosse inevitável. Como se matar o Coringa tivesse sido o primeiro passo para um caminho sem volta...

— E você não acha... — comecei, tentando costurar as palavras no ritmo da minha respiração — que ao fazer isso, ao eliminar quem você julga sem chance... você pode acabar se corrompendo?

Ele não respondeu de imediato. Ficou parado, com a capa cobrindo parte do corpo como uma sombra. Seus olhos não brilharam, nem vacilaram. Apenas me encararam com aquela firmeza que só ele tem.

— Talvez — disse, enfim. — Mas por isso dou três chances. Três. É o suficiente para alguém repensar o que está fazendo. Se não muda... se insiste em ferir, matar, roubar, manipular... então será extirpado da sociedade. Não precisamos deles.

A palavra caiu dura no ar. Extirpado.

— Você acha que isso vai melhorar Gotham? — perguntei, mesmo já sabendo a resposta. Mesmo que ela fosse um tanto provocante.

— Não — ele admitiu. — Talvez piore no futuro. Talvez essa cidade nunca melhore. Mas enquanto eu existir, não vou deixar que esses maníacos toquem em alguém inocente. Não enquanto eu estiver aqui. Eu não sou só a vingança... Sou a justiça. O lado mais escuro da justiça... o que encosta na loucura, mas ainda mantém certo controle.

Ele me olhou de novo, e por um momento, não vi o morcego. Nem o símbolo que ele representa. Ou a coisa que os bandidos temem e as crianças sonham. Eu... eu via ele. Via o que ainda restava de um homem ferido sob toda aquela armadura emocional. Conseguia ver toda aquela tristeza que ele escondia bem dos outros.

Me aproximei. Envolvi meus braços ao redor dele devagar, sentindo o cheiro do couro e do suor, do sangue seco no meu braço e da noite que parecia pesar sobre nós dois.

— Gostaria imensamente que você não precisasse viver assim... carregando todo esse peso de uma cidade inteira, mergulhada na loucura... Mas você não está sozinho contra esse mundo. — ergui minhas mãos até seu rosto, meus dedos tocando a única parte visível de sua pele.

Ele não respondeu. Envolveu minha cintura com firmeza e então me beijou firme.

Não houve hesitação nele, em nós. Apenas o gosto quente de um beijo entre dois sobreviventes do caos. Nos agarramos como se o mundo estivesse desabando lá fora — e talvez estivesse mesmo. Mas naquele momento que tudo fosse a merda. Nós tínhamos algo.

Eu o empurrei no meu guarda-roupa, os beijos foram intensos. Delicioso assim como a sensação da excitação em meu corpo. Sua mão era firme e pesada na minha cintura, puxando e apertando contra a armadura dele. Pulei, envolvendo minhas pernas nele. Eu o queria inteiro. E ele me queria do mesmo jeito, mesmo que sempre estivesse tentando controlar. Eu sabia que o provocava, que fazia ele sentir mais do que apenas raiva e tristeza contida.

— Selinne... — ele murmurou durante os beijos. Adorei ouvir meu nome mesmo que fosse através daquele modulador de voz.

Deslizei os dedos pelo queixo dele, sentindo a pele quente, a rigidez da mandíbula, o conflito que ele carregava nos lábios deliciosos. Senti meu vestido subir e sua mão apertar a minha coxa com força, deixando marcas da sua luva. Ele empurrou a mão um pouco mais para dentro, tentando alcançar algo que me faria enlouquecer, até que...

Bip. Bip. Bip.

Um som eletrônico cortou o momento como uma faca. Nos arrancando da realidade de uma vez só.

Ele se afastou do meu rosto e pressionou um botão atrás da orelha.

— Fala, Robin — disse, sem tirar os olhos dos meus.

Uma voz metálica, levemente infantil de uma inteligência artificial, respondeu quase de imediato:

— Houve um novo roubo. Testemunhas viram uma mulher vestida como um felino saindo da Joalheria Langsfield, no Distrito Histórico. O item roubado foi uma pulseira egípcia de alto valor arqueológico. Sem feridos.

Ele suspirou. Profundo. Lento. Quase... resignado.

Não falei nada. Apenas abaixei a cabeça e desci ajeitando o vestido.

— Parece que você vai ter que dar mais uma explicação à polícia — disse ele.

Pisquei devagar.

— Eu sei... lá vamos nós de novo...

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