15 - Continue a Nadar

 
As luzes da cidade começavam a piscar com aquele tom amarelado e doente que só Gotham consegue ter ao entardecer. Eu voltava com a sacola nas mãos, meus dedos doíam levemente.

Foi quando ouvi o som. Era um miado. Fraco, arrastado.

Vinha de um beco estreito, perto demais do caminho que eu fazia sempre para casa. Dei dois passos, hesitei. Mas já sabia. Senti o cheiro de gasolina velha, o rangido das dobradiças enferrujadas... e aí os vi.

Dois homens grandes. Um deles usava uma jaqueta de couro desbotada, o outro parecia ter saído de algum porão fedido. Estavam colocando gatos em jaulas, empilhando os animais como se fossem lixo reciclável. Dentro da van, outros gatos miavam desesperados. Vi um filhote branco de olhos azuis tentando escapar por entre as grades.

— Esse aí é diferente... olha essa pelagem, o Pinguim vai pirar — um deles disse, rindo.

— Ele quer todos. Disse que quer variedade... Disse que vai começar pelos gatos, depois vamos atrás dos cachorros...

Meu punho fechou sozinho.

Pinguim?!

Aquela aberração com complexo de zoológico agora estava colecionando bichos? Tráfico de animais? Vivissecção? Show particular? Seja lá o que for, não ia deixar isso quieto.

Segui direto para casa, mas meus pensamentos já estavam a quilômetros dali.

Guardei o vestido no armário como se fosse vidro. Dei ração à Isis, que ronronou e esfregou a cabeça na minha perna. Olhei para ela como quem pede desculpas antes de sair.

— Prometo que volto rápido, não durma antes de mim...

Vesti meu traje como se fosse uma daquelas noites. Embora essa seja com objetivos diferentes, novamente.

(...)

A noite me levou até o apartamento de Rolo. Um ex-capanga do Pinguim que já tive o desprazer de conhecer na época em que abria cofres para outros criminosos. Era baixo, desajeitado, com um hálito que parecia uma lata de sardinha aberta há três dias.

Entrei habilmente pela janela do quarto, sem fazer som.

Quando ele acendeu a luz da cozinha, eu já estava atrás dele, sentada na bancada como uma sombra de luxúria e perigo.

— Boa noite, Rolo... Sentiu minha falta?

Ele derrubou a garrafa no chão e gaguejou algo inútil. As pernas dele tremiam mais que cortina em dia de vento.

— C-c-cê... não pode... você sumiu! Achei que...

— Estava presa? — passei uma das garras sobre a pia de inox, fazendo um risquinho que ecoou no cômodo. — De fato, eu estava, mas eu mudei, querido. Mas o que vocês estão fazendo com os gatos na minha cidade... isso não tem perdão.

Demorou pouco para ele falar. Rolo sempre foi mais covarde que leal.

— É um galpão, perto dos trilhos no distrito industrial! Um velho frigorífico, abandonado desde os anos noventa. Ele... ele tá lá, com os gatos... e mais gente! Eu juro que não sei de mais nada!

— Claro que isso é tudo o que você sabe... Você não mentiria pra mim, não é? — me aproximei sorrindo e segurei seu rosto. Ele nem reagiu.

Deixei Rolo com um arranhão no orgulho e outro no rosto, bem superficial — só para lembrar quem ele viu essa noite.

Subi ao telhado, o vento da madrugada bagunçando meu cabelo loiro. Olhei em direção ao céu coberto e por um segundo considerei...

Avisar o Bat.

Mas não.

Ele devia estar ocupado com alguma outra investigação além do meu caso. Talvez cuidando do Cara de barro ou dando uma surra em algum outro maníaco com tendência psicopatas.

Aquela era minha luta.

Meus preciosos gatinhos.

E o Pinguim... vai se arrepender de ter tocado em cada um deles!

(...)

O galpão parecia um cadáver de metal oxidado à beira dos trilhos. O antigo letreiro pendia, torto, com as letras meio apagadas: frigorífico W. & Filhos. Um nome que já não significava mais nada naquela cidade. Agora, era só mais um esconderijo — mais uma toca nojenta para os ratos que servem o Pinguim.

Me aproximei pelo alto, andando pela viga que cortava a lateral do telhado. Abaixo, algumas luzes piscavam. Vi caixas, jaulas, latas de ração industrial, barris de sabe-se-lá-o-quê. E então, os homens. Pelo menos dez, alguns de colete, outros com cigarro na boca e aquela arrogância no rosto. Detestáveis.

— Ei! — um deles me viu, apontando. — Que diabos você tá fazendo aí em cima? Veio se juntar à causa?

Desci com um salto leve, aterrissando com um joelho no chão quebradiço, o chicote já estava na minha mão, pronto para ser usado.

— Me juntar? — ergui o rosto com um sorriso. — Eu jamais me juntaria a um verme como o Pinguim... Ele mexeu com coisas que não devia, quero meus gatos livres...

As armas se ergueram ao mesmo tempo. Dez canos apontados para mim. Dez alvos.

Eu sorri sentindo o coração disparar.

E ataquei.

Rolei para o lado, esquivando dos primeiros tiros. Um salto giratório me levou direto contra dois deles. Chutei o primeiro no queixo com força suficiente para lançá-lo contra uma pilha de caixas. O segundo tentou levantar a arma — girei o chicote, a ponta se enrolou no cano e puxei com tudo, fazendo a arma voar longe.

Um outro tentou me pegar por trás. Joguei o corpo para frente, me impulsionei com as mãos e chutei para trás, acertando o nariz dele com o salto da bota. Senti o osso quebrar. Ele caiu como um saco de carne.

— Prrr isso deve ter doído... — sorri.

Outro veio correndo com uma barra de ferro. Me joguei no chão e escorreguei por baixo dele, entre as pernas. Me levantei girando e cravei as garras no saco dele. Ele caiu urrando. Girei o corpo de novo, peguei a arma caída e atirei — três vezes. Um dos comparsas caiu com tiros no ombro, gritando por ajuda.

— Maluca! — Um deles gritou.

— Peguem ela!

Mais dois surgiram do fundo, descendo uma escada com metralhadoras improvisadas. Saltei no ar, agarrei uma corrente pendurada e balancei, desviando dos tiros que ricocheteavam nos contêineres. Soltei no ponto certo, caindo sobre um dos atiradores como um raio. Quebrei o braço dele com um estalo seco, a arma caiu. O outro tentou fugir.

— Aonde pensa que vai, ratinho? — corri atrás dele pelos corredores apertados de ferro e jaulas, meu chicote zunindo no ar.

Lancei a ponta como uma flecha e ela se prendeu no tornozelo dele. Puxei com força. O homem caiu de cara no chão, o sangue respingando deliciosamente.

— Vai precisar de uma bela cirurgia, quer o contato do meu cirurgião favorito?

Outro grupo apareceu. Mais cinco. Todos armados.

Puxei fôlego. A adrenalina me deixava afiada, viva.

Corri até um contêiner alto e saltei, fazendo uma pirueta no ar. Eles atiraram. As balas cortaram o ar, mas nenhuma me pegou. Rolei sobre a superfície metálica, me joguei do outro lado e caí entre dois.

— Aqui, passarinho! — Girei os calcanhares, dei um chute circular no primeiro e uma cotovelada brutal no segundo.

Peguei o braço dele e torci de uma vez — ouvi o estalo.

— AHHHHHHHHH! — ele gritou.

Um deles tentou mirar de novo. Usei o corpo caído como impulso e saltei alto, girando. O chicote zuniu, acertando o rosto dele com um corte profundo. Ele caiu cambaleando.

— Continue a nadar... continue a nadar... — cantarolei indo pegá-lo. — Vocês são lentos como peixes num aquário... — peguei a arma dele.

Meus pulmões ardiam. Sangue escorria de um corte no braço, mas ignorei. A raiva me guiava. O som dos gatos presos em jaulas continuava lá, miando, chorando.

Eu não ia parar até libertar todos.

Apontei a arma para o pescoço suado do refém que usei de escudo. Estava cercada. De novo. Mas não com medo. Com raiva.

— Mulher-Gato... — ouvi aquela voz. — sempre tão gatuna... Não acha tudo isso um exagero da sua parte?

Me virei com cautela. Lá estava ele. Oswald Cobblepot. Metido num terno bordado ridiculamente caro, com aquela bengala com ponta de prata. A outra mão... acariciava um gato. O persa branco de antes, fofo como algodão.

Tive que rir, de tão absurdo a cena.

— Por que a bagunça no meu covil, hein? — ele perguntou, afagando a criatura no colo. — Que falta de modos... Seu dono não te ensinou boas maneiras com esse chicote?

— Vi dois dos seus homens — apontei com o queixo para os imbecis ainda armados. — Estavam capturando gatos na rua. Jogando em uma van. E não gostei nada disso...

Oswald soltou uma gargalhada curta, um som porco.

— Ora, ora. O que houve com o seu uniforme antigo? Aquele cheio de remendos de linha branca?

— Saiu de moda... — murmurei.

— Você tá parecendo uma dessas militantes da internet. Tão apegada a animais... Mudou de lado? Virou vegana?

Revirei os olhos, mantendo a mira firme. Ao meu redor, o cerco apertava. Pelo canto da visão, analisei: três armados à esquerda, dois à direita. Um mais lento, mancando. Poderia derrubar pelo menos quatro deles antes de levarem um tiro certeiro em mim. Eu ainda tinha uma chance boa.

Mas antes que eu pudesse decidir entre lutar ou recuar, Oswald fez algo inesperado.

— Abaixem as armas.

Eles hesitaram. Ele repetiu, mais alto.

— Abaixem. Agora! Droga...

Um por um, os braços desceram. A tensão diminuiu, mas meu instinto felino seguia gritando. Isso era estranho. Muito estranho.

Soltei o refém com desprezo e dei um passo à frente, ainda com os punhos prontos.

— E qual é a sua jogada agora, Pinguim? Vai me oferecer um pratinho de leite? Seria uma pena, tenho intolerância à lactose.

— Não, querida. — Ele virou as costas. — Me acompanhe. Tenho algo pra te mostrar...

Segui atrás dele, desconfiada, os olhos percorrendo o lugar, o chicote pendendo solto na mão. Ele abriu uma porta de metal ao fundo do galpão. Luz branca escapou pelas frestas.

E então vi.

Gatos.

Dezenas. Talvez centenas. Em jaulas, sim. Mas limpas. Organizadas. E ao redor... tigelas de comida, arranhadores, caixas de areia. Dois veterinários cuidavam de alguns animais numa mesa de aço inox. Um gato siamês tomava soro. Outro recebia um curativo na pata destroçada por algum maluco.

Franzi o cenho.

— Que... merda é essa?

— Uma ONG — ele respondeu, com aquele maldito sorriso de autoindulgência. — A Fundação Cobblepot de Resgate Animal. Vai abrir semana que vem. Resgates, tratamentos, doações. Os melhores felinos da cidade, todos sob meus cuidados. Um presente pra Gotham... e pro meu nome, claro.

Cruzei os braços, encarando cada detalhe com ceticismo.

— Vai doar todos esses gatos?

— Todos. — Ele inclinou a cabeça. — Por que o espanto? Não sou feito só de gelo, guarda-chuva e crime... Também tenho um coração... Ferido desde a morte de minha amada mãe, mas tenho.

— Certo... — fiz uma pausa e estreitei os olhos. — Mas por que gatos? Por que não... pinguins?

Ele sorriu. Um sorriso torto, vaidoso e cheio de segredos.

— Porque, minha cara... pinguins não rendem tantos likes. E vê algum nos becos?

A vontade de arrancar o bigode dele com as unhas bateu forte, mas me controlei. Algo aqui ainda não estava certo. Mas se fosse um teatro, ele era digno de Oscar.

— Muito esquisito...

Fiquei em silêncio por um momento, ainda observando os gatos — tantos olhares felinos em minha direção, alguns curiosos, outros receosos, um ou outro tão desconfiado quanto eu. Um deles, preto com uma orelha dobrada, se aproximou da grade.

Me agachei.

— Tudo bem com você? — sussurrei. — Parece ter passado maus bocados...

Ele respondeu com um miado curto, quase ríspido. Ah, entendi. Desconfiado, mas estável. Assim como eu.

Oswald riu atrás de mim.

— Gata falando com gato. Que cena linda — Depois se aproximou com aquele jeito manco. — O Morcego ficará com ciúmes.

Revirei os olhos, mas segurei o impulso de lançar meu chicote na cara dele.

— E por que, exatamente, você está fazendo isso?

— Batman — ele respondeu como quem diz o nome de um velho desafeto. — Me deu só mais uma chance. Disse que, se eu não mostrasse que posso mudar, já era. — Um silêncio breve. — Então... cá estou. Não quero terminar como o nosso desquerido Coringa... Nosso Morcego é uma versão menos paciente.

Por um instante, não senti o sarcasmo em sua voz. Nem o cheiro da mentira.

Ele passou os dedos pelo corpo de um Maine Coon listrado.

— Eu queria te recrutar, sabia? — disse. — Pro projeto. Só não sabia como. Achei que talvez me arranhasse. E eu também estou ficando velho demais... Uma hora ou outra, preciso descansar as asinhas.

Cruzei os braços, desconfortável. Sempre fui boa em ler mentiras... e ainda assim, algo na voz dele... me desarmou.

— Eu já consegui um emprego — falei, quase rindo do absurdo da situação. — Mas... se isso aqui for real, se for mesmo pra manter você fora da lama, posso ajudar. Um pouco. Talvez. Com uma pata, quem sabe...

Ele riu. Um riso curto, de canto de boca. Enigmático, como sempre.

— Muito gentil da sua parte, Mulher-Gato.

Fiz carinho nas orelhas do gato preto, que ronronou brevemente. Me levantei.

— Me desculpa pela confusão. — Olhei ao redor mais uma vez. — Eu não esperava... isso.

— Ninguém espera. — Ele ergueu os ombros. — Mas mudanças acontecem... Não preciso ficar atrás das grades pra perceber isso.

Estreitei os olhos, mas não disse nada.

Saí pela mesma porta de metal por onde entrei, ouvindo o som dos gatos miando suavemente ao fundo, como um tipo de coral estranho e reconfortante. Gotham estava lá fora, escura, úmida e cheia de segredos.

E, por mais bizarro que pareça... talvez um deles estivesse mesmo tentando mudar. Assim como eu estou...

Talvez algumas pessoas só precisem parar de olhar para o abismo... Mesmo que seja muito difícil não piscar.

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