13 - Totem

 
Cochilar dentro do Batmóvel não é como dormir no banco de trás de um carro comum, não mesmo! O ronronar dos motores, o leve zumbido dos computadores, a temperatura controlada... Acordei com o som do sistema de navegação anunciando que estávamos chegando. O mundo voltou aos poucos, e quando pisquei de novo, vi Gotham deslizando pelas janelas escuras, era um borrão.

— Já estamos quase lá — disse ele, sem tirar os olhos da rua.

— E onde é "lá" exatamente? — perguntei atordoada.

— O apartamento de Bianca Moreno. Fica no 16º andar. Prédio de 30 andares, fachada acinzentada, poucas câmeras.

A voz dele era tão neutra quanto o GPS, mas o conteúdo era outra história. Eu franzi a testa.

— O que você leu sobre ela? Aquele monitor consegue todas as informações que precisa?

— Formada em Direito pela Universidade de Gotham, turma de 2014. Especializada em causas públicas. Trabalhou com defensoria, depois abriu um pequeno escritório. Divorciada desde 2021. Sem filhos. Três gatos. Consome café artesanal de marca cara, quase sempre com xarope de lavanda. E costumava postar fotos dos animais e da rotina no Instagram. Diminuiu a frequência em 2023. Mudança repentina no padrão de comportamento. Visual mais escuro, tons frios nas roupas e nos filtros. Começou a frequentar menos bares e mais mercados noturnos. Adotou outros dois gatos nos últimos seis meses. Agora são cinco. Todos pretos.

— Você stalkeou a mulher inteira? — mantive o olhar fixo nele, isso não deveria me surpreender, mas ouvir ele falando tudo isso com uma naturalidade foi bizarro.

— Eu investigo.

— Ah, ótimo. Então você sabe o que ela comeu no café da manhã também?

— Torrada com cream cheese. Sem açúcar no café.

Revirei os olhos. Não dava para saber se ele estava brincando ou se era sério. No caso dele, era sempre meio-termo.

— Fez o mesmo comigo? — me aproximei de seu rosto, observando atenta. Era tão difícil adivinhar quem era aquela pessoa mascarada. E confesso que sempre tive medo de descobrir... acho que perderia um pouco a graça.

— O que você acha?

Me afastei sorrindo.

O prédio era um bloco de concreto cinza com janelas gradeadas e uma portaria vazia. Subimos pelo elevador de serviço. O cheiro de produto de limpeza barato e cigarro impregnava as paredes. Quando a porta do 16º andar se abriu, o corredor estava escuro, o que só tornava tudo mais desconfortável — pelo menos para mim, — ele estava tranquilo. Era seu habitat natural.

Ele deslizou até a porta como um fantasma. Eu fui atrás.

— Tem certeza que ela está sozinha? — perguntei, encostando no batente.

Ele assentiu com a cabeça. Então, com um movimento ágil, abriu a porta com um clique quase imperceptível.

A sala estava iluminada pela luz azulada da televisão. Um canal de documentário passava algo sobre recifes de coral. Bianca estava sentada no sofá, de pijama escuro, uma taça de vinho pela metade na mão. Quando Batman entrou, ela deu um pulo.

Mas quando me viu, ficou imóvel.

Foi como se o mundo parasse por um segundo. Os olhos dela, arregalados, cravaram nos meus. Ela deixou a taça escorregar, mas ela nem caiu no chão. Ficou suspensa entre a borda da mesa e o tapete.

— Bianca Moreno — eu disse, tirando o anel do decote e mostrando para ela. A pedra de jade brilhou sob a luz da TV. — Reconhece isso?

Ela não respondeu. Só continuou me olhando, como se tivesse visto um fantasma. O cheiro da sala era uma mistura forte de lírio e cigarro barato, do tipo que gruda no fundo da garganta. Minha nuca doía de leve.

— Você conhece a seita dos gatos, ou sei lá o quê?

Nada, nem uma palavra sequer.

— Me responda! Você deu isso ao Falcone... Esse é um dos acessórios roubados de uma joalheria. Se você não está envolvida nisso, diga pelo menos um nome, e vamos atrás dessa pessoa. Se tiver mais algo com você, é melhor nos dizer.

Ela mordeu o lábio inferior. Depois começou a mexer a língua dentro da boca. De um lado para o outro. Meu corpo arrepiou em alerta, meu instinto mais aguçado.

— Quero ser uma bela gata da noite como você. — foi tudo o que ela disse, me olhando profundamente. Como se pudesse enxergar a minha alma.

Rápido como um raio, Batman atravessou a sala. Mas foi tarde demais. Bianca fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Um som seco, como um estalo, ecoou.

Ele a segurou pelos ombros, enquanto o corpo amolecia. A boca espumava levemente. Uma cápsula foi engolida.

— Cianeto — declarou ele, depois de checar os sinais dela e esticar o corpo sobre o carpete.

Me afastei, o coração martelando forte no peito. A televisão continuava mostrando peixes coloridos nadando num mar cristalino, alheios a tudo.

— Por que ela...?

— Algum tipo de protocolo de queima de arquivo.— ele se levantou. — Ela sabia demais sobre essa seita, e não estava afim de compartilhar.

— Maldita... e maldita seita.

— Não tire nada do lugar. — ele alertou, andando pelo apartamento, olhava tudo com atenção. Um semblante pensativo.

Andei até o aparador. Vários livros empilhados, uma vela preta apagada, e uma foto chamou a minha atenção: Bianca com Falcone, num bar. Sorrisos, copos brindando. Ela parecia feliz nessa foto. Eles tinham algo a mais, e Falcone não nos disse.

— Será que eles tinham um caso? Talvez Falcone esteja mais envolvido do que nos disse... — Meus punhos se fecharam com tanta força que senti as unhas cravando no couro. — E porque ela disse aquilo...?

Ele não me respondeu. Se limitou a checar os cantos com aquele olhar analítico de sempre. Vi o corpo de Bianca no chão. Pensando que tipo de seita poderia ter um protocolo tão frio quanto esse...

— Estávamos tão perto de descobrir alguma coisa... — sussurrei, engolindo o nó de frustração que subia pela garganta. — Ela se matou. Se matou na nossa frente.

Isso dizia muito sobre o que estávamos enfrentando. A maldita seita era mais severa do que imaginávamos. Se alguém como ela preferia a morte a falar uma palavra sequer... o que mais estavam escondendo? Que tipo de doutrina eles pregam nesse lugar? É desumano...

Batman voltou, e se abaixou, examinou o corpo com sua precisão clínica, checando as mãos e as unhas. Seus olhos corriam pelo apartamento, captando detalhes que passariam despercebidos por qualquer um. Ele se levantou e andou em direção à estante. Tocou um pequeno totem egípcio com cabeça de gato e observou.

— Isso deve ser mais uma relíquia roubada do museu. — murmurei, aproximando-me e tomando o objeto da mão dele. — Por que eles dariam algo assim a um membro da seita?

Ele não respondeu, apenas deu alguns passos até um quadro pendurado sobre o sofá. Quadros com pinceladas brancas, eram Cisnes. Um tanto irônico, algo tão delicado na casa de uma louca, diante de uma cena tão grotesca.

Batman deslizou os dedos pela moldura e, com um movimento quase preguiçoso, afastou o quadro. Atrás dele, um cofre.

— Deixa comigo. — Passei na frente dele, confiante em mostrar minha utilidade.

— Posso cuidar disso...

— Quieto. — interrompi. — Deixa com a gatinha aqui.

Subi no sofá, coloquei o ouvido contra a superfície metálica e comecei a girar a roleta devagar. Três para lá... dois... quatro para cá... anotei os cliques mentais, tentei combinações possíveis. Demorei um pouco mais por estar enferrujada, talvez dois minutos, mas finalmente o cofre fez um som sutil. A tranca cedeu.

— Sou demais.

— Eu poderia ter resolvido isso mais rápido. — disse ele, casual, encostado na parede e de braços cruzados.

— Duvido. — rebati, arqueando a sobrancelha. — Eu era a melhor ladra de cofres do mercado, por anos consecutivos tá?

— Ano de formatura de Bianca: 2014. — ele comentou, com aquele tom impassível. — Era a senha do cofre.

Revirei os olhos.

— Detetive exibido.

Um meio sorriso, quase imperceptível, surgiu nos lábios dele, enquanto se aproximava e abria a porta. Mas o que estava dentro não arrancava nenhum sorriso.

Era um altar. Um altar grotesco, perturbador. No centro, um pote de vidro repleto de um líquido espesso e vermelho. Atrás havia mais dois dos itens roubados, um do museu e outro da joalheria. Um anel de ouro maciço e um colar dourado com pingente em forma de garra.

— Isso é sangue?... — sussurrei, afastando o rosto, enojada.

Batman analisou o conteúdo com a calma de quem observa um vaso antigo. Eu queria vomitar. O cheiro metálico se misturava ao lírio enjoativo.

— Esse sangue é dela?

Batman apontou para a caixinha de areia no canto da sala. Estava limpa, como se não fosse usada há muito tempo. Então percebi, não havia visto nenhum gato no apartamento. Nem um miado sequer.

— Não... — senti o estômago apertar. — Você acha que ela...

— Sim.

Meu sangue ferveu. Uma raiva quente tomou conta do meu corpo.

Ela tinha matado os gatos.

Todos eles.

Aqueles que dizia amar na internet. Ela os adotava para... sacrifícios? Ritual? Os inocentes animais que deveria amar e proteger...?

Avancei para o corpo caído no chão, pronta para descontar a fúria.

— Desgraçada! — gritei, levantando a perna com toda a minha força para chutá-la.

— Não! — Batman me segurou. Rápido. Firme. Suas mãos prenderam meus braços com força suficiente para me conter, mas sem machucar.

— Me solta! — gritei, esperneando, os olhos cheios de lágrimas. — Me deixa dar só um chute! Um só! Ela merece! Merece por cada gato, por cada vida! Ela os matou! — lutei para sair. — Ela é um lixo! Ela precisa pagar! Ela precisa... ela precisa pagar caro!!! — fechei os olhos.

Ele me abraçou.

Sem dizer nada. Só me segurou firme até meu corpo parar de se debater contra sua armadura. Minhas pernas cederam. As lágrimas correram livres. Eu chorava de tristeza, de raiva, de impotência. Por que as pessoas são tão cruéis? O que leva alguém a fazer isso?

Quando consegui respirar de novo, ele me soltou devagar.

Chamamos a polícia. Eles assumiriam dali, recuperando cada um dos itens roubados. Peguei a coleira de um dos gatos dentro da lixeira. Meu dedo passando pelo nome entalhado, "Kitty". Aquilo estava no lixo como se não significasse nada...

No caminho de volta, o silêncio entre nós era denso. Eu olhava fixamente para a coleira entre meus dedos.

— Não entendo... — sussurrei. — Por que algumas pessoas são tão cruéis com os animais? Eles não têm culpa de nada, estão tão perdidos no mundo quanto nós... só querem carinho, cuidado e alguém com quem se importar... por que machucar? Por que fazer uma coisa dessas?

— Porque essas pessoas já estão mortas por dentro. — respondeu ele, com aquela voz grave. — E quem está morto por dentro... não se importa com mais nenhuma alma.

Assenti, enxugando as lágrimas. Era difícil aceitar, mas era a dura verdade.

— Precisamos achar essas pessoas. Acabar com essa seita maligna. Cada um deles. — disse, firme. Segurando a coleira contra o peito.

— E vamos. — respondeu, olhando a estrada adiante.

Quando ele me deixou em casa, se virou para mim antes que eu saísse.

— Vou continuar investigando as pessoas do DNA coletado no teatro. Preciso que você se mantenha na linha até lá.

— Promete que vai me chamar assim que decidir ir atrás deles?

— Prometo.

— Acho bom não agir sozinho... quero fazer parte disso. Você sabe, é importante pra mim. — olhei para ele por um momento, ele assentia. Me aproximei de pressa e dei um beijo tão rápido quanto saí do carro.

— Não falte o seu trabalho, Selinne. — ele disse antes de fechar a porta acima da cabeça.

Ativei minhas garras e subi rápido até meu apartamento. O sol nasceria logo, e eu precisava de muita energia para os dias que viriam.

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