1 - O Retorno à Cidade das Sombras

 


 Gotham nunca mudou. Não importa quanto tempo você fique longe. As ruas continuam molhadas, mesmo quando não chove. As luzes piscam como olhos de predadores escondidos. E o cheiro? Fumaça, asfalto e traição... Você consegue sentir o cheiro de podridão no ar, a corrupção, o medo... E o caos é visível por todos os lugares.
Foi nesse cenário que pisei de novo, depois de dois anos longe. Dois longos anos atrás das grades, pagando por crimes que todos já esqueceram — ou fingiram esquecer. Meu nome ainda era sussurrado entre os ladrões, como a ladra mais inesquecível de todas. Mas eu não era mais ela, aquela sombra felina. Não... eu queria acreditar que não... Eu me esforçaria para não ser mais quem eu era... e essa é uma chance de recomeçar. Quem sabe dê certo...
Mas aquele sentimento ainda persistia... E as lembranças da minha liberdade voltavam... Eu era ainda mais bela à noite, pegava o que eu queria, entrava sem ser vista e era ágil, muito ágil. Até ser perseguida e acabar diante do comissário.
— Ei, Selina...! — chamou uma das detentas.
Eu limpava o salão de refeições com um esfregão velho. Apenas levantei o olhar, vendo a televisão protegida por grades.
— Aquele não é o seu amigo? O tal Bruce Wayne? — ela continuou, apontando para a TV. — Ele acabou de retornar daquele cruzeiro de duas semanas. Veja!
Olhei para o rosto dele, e para o piebaldismo... Aquilo era sua coroa, "príncipe de Gotham" sempre riamos disso. Uma das belas heranças da família Wayne.
Bruce estava diante da sua principal empresa. Usava um terno roxo escuro, e acenava para a coletiva de imprensa. Virei de costas e continuei esfregando o chão, meu peito doeu quando pensei em seu olhar naquele julgamento e a declaração de algumas testemunhas. Mas afastei essas lembranças.
Fiquei dois anos na prisão, mas a minha boa conduta fez com que a minha pena fosse reduzida. Três anos a menos e uma reavaliação psicológica, com a nova psiquiatra da prisão. Mas eu ainda ficaria mais dois anos atrás das grades.
— Selina?
(...)
Dias depois, o tribunal resolveu reagir novamente, abriram meu caso outra vez, para uma "Revisão de Decisão de Prisão Preventiva".
— Arrume suas coisas. — disse o guarda diante da porta aberta da cela.
— Arrumar as minhas coisas? — olhei com desconfiança. — Vão me trocar de cela novamente?
— Não. Sua fiança foi paga, e você será liberada.
O tribunal fez uma revisão de denegação de fiança.
— Paga? — inclinei a cabeça.
— Seria isso, um milagre? — perguntou minha colega de quarto com um sorriso de canto.
Mas milagres não acontecem em Gotham, não com essa justiça falha. É necessário encher o bolso de algum juiz ou promotor para darem outra chance a alguém como eu... então aquilo teve nome e sobrenome:
Bruce Wayne.
Ele pagou minha fiança milionária como se fosse trocado de bolso. Sequer fez uma ligação ou uma visita antes, apenas pagou. E eu me senti em dívida novamente. Bruce era um bom amigo, mas eu não queria me aproveitar dele, e nem queria que ele pensasse que preciso ser salva.
Depois de assinar a papelada e pegar novos documentos, alterei meu nome para Selinne, uma forma de recomeçar, uma forma mais "visível" de sentir que a mudança veio.
Quando me vi livre, peguei um táxi velho até o apartamento que Bruce gentilmente havia reservado para mim. Pequeno, mas elegante. Nenhum luxo exagerado, só o necessário para alguém que dizia querer "recomeçar". Eu não pedi aquilo. Nunca pedi. Mas aceitei. Porque no fundo... parte de mim ainda queria provar que era possível mudar... Lutar contra o desejo de ter as mãos ágeis.
Destranquei a porta, sentindo o ar morno do interior me envolver. Havia flores sobre a mesa. Um belo buquê de Íris. Sorri com ironia, ela simboliza o recomeço e a esperança.
— Dramático como sempre, Bruce.
Deixei minha caixa de itens pessoais no chão, tirei os saltos e fui até a imensa janela. E vi Gotham lá embaixo, viva e podre, como um coração que pulsa mesmo envenenado. Eu conhecia cada sombra daquela cidade. Cada telhado. Cada rota de fuga. E, apesar de tudo, algo dentro de mim apertou. Uma saudade amarga, talvez...
Mas eu jurei a mim mesma: dessa vez seria diferente.
Então o telefone fixo tocou inesperadamente.
Fui até ele com passos lentos e atendi.
— Alô? — falei primeiro, aguardando.
— Senhorita Selina?- ... Selinne...? — disse uma voz cansada, parecia ser um homem de idade.
Logo reconheci aquela voz...
— A... Alfred?
— Sim, a sua disposição, senhorita. Preciso avisar que há algo seu na mansão Wayne. O patrão Bruce pediu para avisar antes que ficasse preocupada. Tentei levar mais cedo, mas não consegui pegar.
Antes de perguntar o que era, escutei um som familiar. Um miado.
— Isis! — sorri contente ao escutar a voz da minha gata. — Muito obrigada por cuidarem dela, eu estava mesmo me perguntando por onde ela estaria...
— Não se preocupe, amanhã levarei sua gata. Tenha uma boa noite, madame.
— Obrigada, Alfred. Boa noite...
Ele desligou. Sorri contente novamente e me joguei sobre o sofá, aliviada por saber do paradeiro de Isis.
Encontrei essa gatinha ainda filhote, estava perdida na rua. Os carros passavam rápido por ela, ignoravam aquela pequena vida... Mas não eu. Causei um engarrafamento, para resgatar aqueles olhinhos brilhantes. Senti uma conexão instantânea com ela, assim que a peguei no colo.
(...)
Acordei na manhã seguinte com o som de uma batida na porta. Espreguicei os braços e respirei fundo — fazia tempo que eu não dormia tão bem em uma cama tão macia. Coloquei uma blusa simples, prendi o cabelo de um jeito improvisado e caminhei até a porta.
Mas, ao abrir, fui surpreendida.
— Bom dia — disse Bruce, sorrindo com aquele ar calmo e confiante de sempre, segurando a caixa de transporte com minha gata dentro.
— Bruce? — arqueei uma sobrancelha, surpresa. — Eu achei que o Alfred viria...
— Eu insisti em trazer pessoalmente, já que aqui fica no caminho para a empresa. Ela sentiu sua falta, miava sem parar todas as noites, segundo Alfred.
Isis miou baixinho dentro da caixa.
Sorri e abracei Bruce.
— Estou muito feliz de te ver, senti saudades. — falei sorrindo mais ainda.
— Também senti a sua falta, que bom que está de volta. — ele me abraçou de volta, meio sem jeito como sempre e então me soltou.
— Entra. — abri mais a porta. — Fica à vontade.
— Com licença... — Bruce entrou e colocou a caixa com delicadeza no chão, soltando Isis em seguida.
Ela saiu lentamente farejando o ambiente e veio direto na minha direção. Eu a peguei e fui me sentar no banco perto do balcão. Isis ronronava ao me reconhecer.
— Ela parece bem, está maior agora... — comentei, fazendo carinho em sua cabeça. — Obrigada por cuidar dela, pensei nela todos os dias.
— Foi um prazer. Alfred não admitiria, mas praticamente a adotou... — ele sorriu. — E quanto a você? Está gostando do apartamento? Não é como o anterior... mas se quiser, posso arranjar um maior.
— Ele é perfeito... — murmurei, olhando em volta. — Mas me sinto... — deixei a frase morrer. — Eu não pedi por isso, Bruce... E você já pagou a minha fiança- mais de uma vez, na verdade!... Não sei como não me sentir envergonhada.
— Eu sei que não pediu. Mas você merecia uma chance de recomeçar em um lugar ainda melhor — respondeu, encarando-me com seriedade. — Quero que saiba que ainda tem pessoas torcendo por você, acreditando que pode mudar de vida. Eu acredito na sua reabilitação.
Ficamos em silêncio por um momento, até que ele tirou um envelope do bolso interno do paletó e o estendeu para mim.
— Um cargo nas Empresas Wayne. Assistente administrativa no setor de filantropia. Pagamento justo, horários flexíveis... pensei que poderia interessar.
Fiquei olhando o envelope, sem pegá-lo de imediato. Depois, balancei a cabeça.
— Agradeço de verdade, Bruce... mas não posso aceitar.
Ele franziu levemente o cenho.
— Por quê?
— Já consegui um emprego — respondi sem hesitar, mesmo sabendo que ele notaria.
Bruce me encarou por alguns segundos. Eu sabia que ele percebia a mentira, mas não comentou.
— Tudo bem. Se mudar de ideia, é só dizer. A porta está sempre aberta.
— Obrigada — respondi, apertando Isis contra o peito.
Ficamos ali no balcão por alguns minutos, conversando sobre a minha rotina na prisão, e algumas brigas que me meti. Falei de como precisei defender uma "garotinha" mais de uma vez. Era uma mulher pequena, parecia uma criança, mas todas as detentas implicavam com ela.
Depois de algum tempo, ele se despediu com um sorriso calmo.
— Cuide-se, Selinne. E vamos tomar um café juntos de novo, quando você quiser.
— Você também, Bruce. — dei risada. — É mais do que bem-vindo aqui em casa.
Fechei a porta atrás dele e fiquei alguns segundos parada, olhando para a madeira maciça. Então fui até o quarto me trocar.
— Bruce é um excelente amigo, eu menti sobre ter conseguido um emprego, mas vou encontrar um o mais rápido possível. Se ele acredita que posso mudar, então devo confiar nele... O que acha Isis? — peguei ela no colo assim que terminei de me vestir, ela miou concordando e depois saí de casa.
Andei bastante durante o dia, as ruas de Gotham estavam como sempre: úmidas, movimentadas, com aquele cheiro que não se pode ignorar. Andei por algumas quadras procurando placas de "contrata-se". Entrei em uma pequena cafeteria, pedi um café e sentei perto da janela para descansar as pernas. Foi quando senti.
Alguém me observava.
Não era paranoia. Era aquele instinto antigo, afiado. Os olhos nas costas. Me virei discretamente. Não havia ninguém óbvio, mas aquela sensação não desaparecia.
Paguei o café, saí e decidi dobrar esquinas aleatórias. Tentei me perder no fluxo da cidade. Se fosse alguém me seguindo realmente... logo eu saberia.

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